Vendas corrompem o Relacionamento

Quando adolescente, via com muita curiosidade Kombis lotadas de vendedores do “carnê do Baú da Felicidade” chegando a bairros mais humildes. Lembro que eles recebiam salário mínimo e a comissão era o que fazia seus rendimentos serem diferenciados, então, tão logo as portas desse utilitário se abriam, rapidamente iniciavam suas abordagens comerciais visando obter generosas comissões. Mas como se sabe, esse produto não é a melhor forma de poupar para adquirir um bem ou concorrer a sorteios e prêmios. Contudo, pela astúcia e foco desses profissionais, ainda hoje é expressiva a venda desse “carnê”. Então, você se pergunta: o que tem a ver o vendedor de porta em porta do “carnê do Baú da Felicidade” com o nosso modelo de negócio? Eu diria: tudo e, ao mesmo tempo, quase nada.

Abaixo algumas tipicidades dos vendedores do “carnê do Baú da Felicidade”:

Vendem o que é “necessário”: Vendem algo que, de alguma forma, atende a uma necessidade premente e a um sonho desses clientes, tal qual acontece com o dinheiro que emprestamos (ou guardamos) para muitos de nossos sócios.

Vendem produtos agregados: Com o amadurecimento do negócio, utilizam esse mesmo canal de venda para ofertar seguros, créditos, perfumes etc. Tal qual avançam em nossas prateleiras as soluções não originalmente financeiras como: seguros, consórcios etc.

A comissão valida a eficácia: O salário é apenas figurativo, impondo a esses vendedores um grande esforço para que possam obter boas comissões. Em nosso negócio já ofertamos interessantes salários e benefícios a nossos profissionais, portanto deveríamos solicitar que nos entregassem já um elevado grau de rentabilidade na unidade que gerenciam (teoria econômica da mais valia), fruto de um lapidado relacionamento e não de esforços pontuais de venda.

Não há clientes cativos: Vendem o “carnê” a quem naquele momento se interessar. “Carnê” esse que tem história e apoio de mídia especializada na TV feita pelo idealizador desse negócio.

Vendem o comum: Vê-se um posicionamento efetivo do “carnê do Baú da Felicidade” como a melhor opção, a mais acessível e possuidora de uma amplitude única de benefícios, o que nos permite correlacionar que, em conceito, nossa maior oferta é o dinheiro, o qual é tão comum que há inúmeros fornecedores no mercado. Aqui não entraremos no mérito se somos melhores nisso ou naquilo frente à concorrência, por ser esse julgamento repleto de subjetividade.

Então onde fica o Relacionamento? Com base nessas exposições de motivos, acreditamos ser um equívoco avaliar ou premiar nossos profissionais comerciais pela mera venda, como ocorre com os vendedores do “carnê do Baú da Felicidade”. Devemos desenvolver um processo que valide se a venda potencializa a perenidade do relacionamento comercial, pois diferente do “carnê”, que após “x” meses acaba, nosso negócio só se viabiliza se tivermos uma base de clientes satisfeita com a cesta de soluções que lhe entregamos ano após ano. E essa busca incessante pela perenidade do relacionamento requer um profissionalismo ainda mais aguçado que o daqueles que vendem o “carnê”. E aqui cabe a pergunta: estaríamos premiando coerentemente a evolução de um eficaz relacionamento com a base de associados ou unicamente um esforço isolado de venda?

Premiar a evolução do Relacionamento: A premiação do relacionamento é um estágio avançado da pura venda de uma solução. O relacionamento deve ter como balizador o potencial de cada um de nossos clientes, e isso demanda um relacionamento comercial efetivo, construído entre as partes durante anos a fio e idealizado e apoiado como dogma pela Singular.
Portanto, não é a mera definição de quanto quero crescer (vender) de uma solução ou da sua penetração na base, já que essa visão simplista incorre em erros elementares quanto ao relacionamento, apesar de, equivocadamente, por ora, frente a um mercado comprador, atender as metas de vendas e aos prêmios dos envolvidos.

Os bancos têm grandes resultados focando em vendas: Seria só isso, ou estão maduros, com enormes carteiras de clientes cativos Pessoas Físicas e pequenas e médias Empresas, que demandam muito crédito de consumo a taxas elevadíssimas, onde conseguem alavancar outros produtos como tarifas, seguros etc. Sendo que, quando esses clientes lá deixam seus recursos em conta corrente ou aplicam, permitem captações baratíssimas a esses bancos. Seria ingênuo pensar que esses bancos pouco ou nada fazem para potencializar o relacionamento com seus melhores clientes, já que há castas seletas desses rotuladas de “vips”, atendidas pelos seus melhores gerentes em belas agências. Assim, eles focam no relacionamento na medida direta do valor que dão a seus clientes.

Fica aqui a indagação: queremos seguir os passos dos bancos quanto à qualidade de atendimento ou sermos melhores que eles? Se assim for, acredito que o relacionamento eficaz com nossa base gera vendas sustentáveis e resultados substanciais e longínquos. Já a pura e simples meta de venda gera números que muito provavelmente escondem ineficácias quanto ao real valor potencializado pela carteira de clientes. Números brutos, mesmo dos bancos, escondem imperfeições comerciais, pois são comparações de valores ano versus ano, e não do verdadeiro valor que se pode extrair da base de clientes.
Acredito que, para os bancos, não saber ou poder comparar o seu resultado comercial com o potencial dormente em sua base seja seu calcanhar de Aquiles. Então, é nesse quesito que devemos focar. Não deveríamos buscar nos parecer tanto com os bancos, sendo o que ainda somos. Isso seria acordar um gigante que facilmente poderia ser mantido “cochilando” por anos a fio, já que, ainda, nos consideram “frágeis” e “dispersos” competidores.

Antagonismo da Venda X Relacionamento: Esforços em vendas são interessantes em mercados maduros, onde a solução não é tão eficaz ou a dependência da proposta da solução é elevada, ou ainda, quando o cliente final se porta como desinformado/ansioso. Isso, pois, voltar a realizar vendas com um mesmo cliente não precisa estar no radar do vendedor, mas, talvez, esteja na estratégia do seu patrão e será uma venda feita por outro profissional qualquer. Isso é antagônico à proposta de entrega efetiva e longínqua de benefícios promovida pelo relacionamento, a qual gera ganhos duradouros às partes, abrilhantado pela espiral de bons negócios dele derivado.

Terceiro Princípio Cooperativista: Em 1995 a ACI (Aliança Cooperativa Internacional) definiu os sete princípios do cooperativismo moderno. O terceiro deles – Participação Econômica dos membros – reza que os cooperados devem concentrar suas demandas na instituição à qual estão associados, gerando o desejado benefício a sua sociedade. Portanto, devemos reconhecer que essa desejada aderência ainda está distante do almejado, e nos parece que o foco no efetivo relacionamento comercial é mais oportuno para o nosso modelo cooperativista, já que somente ele permitirá que edifiquemos pilares seguros para nossa perenidade nesse agressivo mercado.

Ponto de atenção: O fato de ainda termos apenas uma mediana penetração de soluções óbvias em nossa base de sócios pode sinalizar que podemos estar adotando há tempos uma estratégica comercial de curto prazo, ou seja, focamos em campanhas de vendas ano após ano, sem monitorar quem, como e quando essa venda ocorreu, se será renovada ou mesmo se esse cliente tem literalmente um compromisso com seu “dono” (nosso profissional que o atende) ou, até mesmo, se percebe se há uma equipe predisposta a dar-lhe colo.
Esse pode ser um dos pontos fracos de nosso modelo de negócio, e que favorece que uma boa parte de nossos sócios se sinta confortável com o seu compromisso cooperativista, mesmo mantendo um forte relacionamento comercial com nossos concorrentes. Ou seja, só fazem em sua Singular aquilo que lhes interessam. Isso nos alerta para a fragilidade do terceiro princípio do cooperativismo moderno – Participação econômica dos membros.

Reflexões Finais: Precisamos nos diferenciar em nosso mercado, dando a nossos sócios a correta percepção que estão tendo uma experiência única por serem exclusivos. Isso nos obrigaria a nos distanciar dos esforços numéricos de vendas como visto em alguns concorrentes, permitindo que tenhamos por parte de nossos sócios uma compreensão que somos diferentes e melhores que os tradicionais bancos de varejo.

Passemos a construir ótimas pontes com nossos sócios, para que dificilmente nos troquem por uma aventura em um concorrente, já que o nosso maduro mercado mostra que é frágil buscar diferenciais baseando-se apenas em preço e/ou na tecnologia. Vendas requerem preço, produto e equipe focada. Já um eficaz relacionamento comercial demanda tempo, orçamento, confiança, eficiência e perenidade, e, por isso, é tão complexo de se obter.

Seria oportuno que nosso modelo de negócio revisse seu discurso de venda, caso o utilize, para o de relacionamento comercial, que se resume em construir um projeto comercial efetivo e justo para as partes. Essa missão será mais amigável se a ela internalizarmos a proposta de sermos diferentes. Sermos cooperativistas.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento com Foco no Cooperativismo de Crédito
www.ricardocoelhoconsult.com.br – 41-3569-0466 – Postado em 05/04/2018