Profilaxia na Distribuição das Sobras

Cautela. Este é o sentido da palavra grega profilaxia. Esta tão bem utilizada na área da saúde que a entende como a aplicação de meios disponíveis para prevenir e evitar a propagação de doenças. Cautela foi o motivo que nos levou a enviar recentemente os artigos: “Um novo foco para o rateio das Sobras de 2009” e “Remuneração do Capital Social de 2009 – Reflexões”. Estes permitiram aos leitores ponderarem sobre a coerência da distribuição das sobras em sua última AGO. Contudo, pelo surpreendente número de perguntas, cenários e reflexões decorrentes da sua remessa, percebemos que o tema não foi tratado na profundidade necessária para que a sobras de 2010 sejam distribuídas com ainda maior assertividade. Portanto, seria prudente uma boa profilaxia contra uma possível distribuição equivocada das sobras (ou perdas) em 2011.

Uma gentileza: para sua melhor compreensão deste artigo, pedimos que o lê-se desprovido da crença que a única forma correta de distribuição de sobras foi a adotada pela sua Singular no início deste ano. Assim, poderá identificar uma ainda melhor maneira de distribuí-la neste ano.

Legislação – “várias” interpretações

 Este artigo se baseará no 8º artigo da Lei Complementar 130 de 04/2009, o qual determina que: “Compete à assembléia geral das cooperativas de crédito estabelecer a fórmula de cálculo a ser aplicada na distribuição de sobras e no rateio de perdas, com base nas operações de cada associado realizadas ou mantidas durante o exercício”. Ou seja, muito próximo da Lei 5764 de 12/1971 que no seu artigo 4º, inciso VII determinava: “o  retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral”.

Percebe-se que o órgão regulamentador não se furta de dar o norte, mas não engessa sua interpretação ao desenhá-la através do amplo jogo de palavras. Mas, como esperado, esta redação já é utilizada como uma fonte inesgotável de criativas interpretações de alguns gestores, esta defendida por bons advogados do cooperativismo de crédito.  Por outro lado, vemos que a LC 130 reforça que a decisão final quanto aos critérios da distribuição das sobras será da Assembleia Geral, mas não deixa dúvidas que as sobras serão distribuídas com base nas operações de cada associado – e não pelos juros pagos. Concordamos que a antiga Lei 5.764 nada engessava quanto à distribuição, pois trazia uma enorme válvula de escape ao explicitar, no final da redação: “Salvo deliberação em contrário da AGO”. Este pode ser um dos fatores que permitia a “defesa” de que se poderia: a) distribuir sobras inclusive por juros pagos; b) considerar o Capital Social como uma operação/aplicação comercial; c) só considerar as operações de crédito; d) etc.

Assim, inteligentemente a lei norteia, mas não engessa as mais de 1.400 singulares, respeitando seus distintos momentos e suas singularidades na forma de operar e de atender seus específicos públicos. Também, percebe-se que a legislação apoia indiretamente o saudável conceito de sobras, apresentando-o como um dos grandes e distintos trunfos deste modelo de negócio.

Por que não falar de prejuízo antes de falar de Sobras?

É saudável e plausível que o tema Sobras seja destaque nas AGO, e se “esqueça” de mencionar a possibilidade de ratear prejuízos. Aparentemente esta dicotomia se deve ao fato do tema prejuízo não ser saudável, ou pela expectativa positiva dos associados presentes na AGO de que foram originalmente convencidos a participar de um modelo de negócio que “só” teria boas notícias – Sobras. Por mais que seja um tema “pesado”, esta é uma situação possível e esperada em qualquer modelo de negócio, e deveria ser pelo menos pré-definida na AGO quanto à forma de um eventual rateio. Isto atenderia também a Resolução CMN 3.859/10, que determina que a “Singular deve manter, em suas dependências, em local acessível e visível, publicação impressa ou quadro informativo dos direitos e deveres dos associados, contendo exposição sobre a forma de rateio das eventuais perdas e a existência ou não de cobertura de fundo garantidor e respectivos limites”.

Atenção: reforçamos sempre a relevância deste pesado tema, pois na prática, quando há prejuízo, se adota soluções “criativas” ou intempestivas, quando não se usa a mesma métrica da distribuição das sobras.  Pergunte-se: como seria o critério de rateio de um eventual de prejuízo em sua singular? Discuta-a com  mais dois amigos e verá que a resposta extremamente complexa.

Dois macros formatos para distribuição das sobras: percebemos que várias singulares distribuíram suas sobras de 2009 com base em critérios convenientes e criativos, balizados na grande maioria pelos juros pagos e recebidos e não pelo saldo médio das aplicações, operações de crédito e depósito a vista.

Assim sendo, a seguir vamos analisar dois modelos macros para a distribuição das Sobras (juros pagos X saldo médio), para que possa refletir sobre este intrigante tema. Vamos às reflexões:

1 – JUROS PAGOS/RECEBIDOS – Primeiro critério e o mais usual

Rateio pelo total de juros (pagos e/ou recebidos) nas aplicações de RDC e créditos, e pelo saldo médio em Conta Corrente/Depósito a Vista. Vejamos algumas ponderações sobre este critério:

1.1 – É uma interpretação não explicitada na LC 130, a qual, em nenhum momento menciona juros pagos/recebidos, e sim explicita “com base nas operações de cada associado”.

1.2 – É uma criativa e tendenciosa interpretação da lei, pois utiliza juros pagos no Crédito, e juros recebidos em RDC, e saldo médio para o Depósito a Vista. Ou seja, parte das sobras distribuídas pelos juros pagos/recebidos e parte pelo saldo médio.

1.3 – Possivelmente iremos nos deparar com o crescimento de 38% da SELIC nesse ano (de 8,75 para 12%). Assim, ao distribuirmos as sobras pelos juros recebidos em 2010, premiaremos muito mais os clientes que tiverem saldo médio em aplicações ativas da metade do ano para frente. Esta benesse penaliza clientes tradicionalmente aplicadores, os quais permitem uma saudável engenharia financeira para a Singular.

1.4 – A boa prática “bancária” orienta que uma eficaz tabela de captação premia com boas taxas clientes de RDC que aplicam bons volumes por prazos longos, pois estes se alinham à real necessidade da singular captar com perfil o mais alinhado possível a sua carteira de crédito. Mas é raro verificarmos singulares que adotam esta política, mesmo que parcialmente. Assim, na distribuição das sobras por juros recebidos em RDC, não premiaremos com boas remunerações globais (% do CDI + Sobras) os bons clientes aplicadores em volumes e prazos.

1.5 – Grandes instituições financeiras reveem de forma cíclica sua tabela de captação, para cima ou para baixo, alinhando-a a sua real necessidade de funding (dinheiro para emprestar). Assim, se tivermos alterado durante o ano fiscal os percentuais de remuneração da tabela de captação, e optarmos por distribuir sobras por juros recebidos, remuneraremos com mais ou menos sobras um associado unicamente pela decisão administrativa de majorar ou reduzir nossa tabela de captação. Problema que não ocorre se adotarmos a distribuição pelo saldo médio aplicado.

1.6 – Independente se não ser legal, percebemos que muitas singulares bonificam facilmente alguns clientes “VIP” ou “Taxeiros” pagando em suas aplicações em RDC, percentuais acima do parametrizado. Este ganho extra os tornará ainda mais “VIP” na distribuição de sobras, pois seus maiores juros recebidos nas aplicações, também serão “inflados” nas sobras. Contudo, é raro encontrar nas Singulares taxas bonificadas para créditos. Caso ocorra, os juros pagos deste tomador “VIP” serão menores, e menor será sua participação nas sobras.

1.7 – Uma Singular com excesso de liquidez pode estar cometendo um equívoco ao pagar muito caro na captação de RDC, e ainda o remunerar fortemente nas sobras por juros recebidos. Haja vista ser uma captação cara e “desnecessária” por não terem tomadores de crédito massificado à altura de sua “compra” de dinheiro. Assim, se obrigam a repassar estas captações para uma centralizadora. Isto resultará em pífios ganhos comerciais se considerarmos o custo administrativo de sua captação, podendo sim se tornar um fonte de prejuízo para a Singular. Além do que, irá correr o risco direto da busca da ótima remuneração (acima do mercado) através da gestão da centralizadora (usualmente fundos não 100% DI). Portanto, não havendo demanda por crédito no volume captado, é um equívoco rotular estes montantes como saudáveis ou como efetivo suporte ao desenvolvimento da carteira de crédito massificado, que é o fim mais nobre das Singulares. Mais equivocado ainda é premiá-los fortemente nas sobras por juros recebidos. O saldo médio, neste caso, ainda é o mais defensável.

Atenção: por oportuno, cabe aqui uma breve reflexão complementar a este artigo. Este cenário de excesso de liquidez se agrava quando não se aloca este excedente de recursos com coerência no crédito de varejo massificado de consumo. Ao contrário, opta-se por concentrá-lo em créditos para poucos clientes, com baixos spreads, em linhas de crédito para investimento (carros, equipamentos, reformas de bens, imóveis…) e com prazos muitos mais longos do que a média da captação. Ou seja, um descasamento no fluxo de caixa, ganhos de spreads baixíssimos e sinalizando uma conduta comercial questionável no médio e longo prazo para qualquer instituição financeira massificada. Por fim: Neste cenário de crédito com baixos spreads, estes clientes tomadores de crédito são poucos bonificados, pois pagarão poucos juros. Já não o seria se fosse por saldo médio no crédito.

Um cliente que use R$ 10.000,00 de cheque especial, em média, pagará muito juros no ano. Já um aplicador em RDC terá que ter um enorme valor para obter os mesmos juros. Reflitamos sobre este corriqueiro cenário. Qual é o cliente que mais acredita na singular? O tomador ou o investidor? Portanto, seria coerente utilizar o saldo médio.

Muito em breve enviaremos um novo artigo nominado de “Capital Social – Vícios e virtudes”. Nele esmiuçaremos o Capital Social e seus desdobramentos. Mas cabe desde já antecipar que nos posicionaremos desfavoráveis a adoção de conceder crédito com taxas bonificadas em função do seu Capital Social do cliente. Contudo, caso adotem a distribuição de sobras pelos juros pagos, estes clientes serão penalizados nas sobras por terem pago pouco juros. Ou seja, algo incoerente para os defensores desta modalidade de crédito. Caso distribuíssem pelo saldo médio, seriam bonificados.

2 – SALDO MÉDIO  – Segundo critério e pouquíssimo utilizado

Rateio pelo montante em saldo médio de cada cliente em cada um dos três grupos (RDC,  Depósito a Vista e Créditos).

2.1 – Em preceito é o critério que mais se aproxima da explicitação da LC 130 de 04/2009, que normatiza: “com base nas operações de cada associado”. Pois ainda não se atentou do por que de não se distribuir sobras por: Seguros, Cobrança, Cartões…

2.2 – É o único critério que permite racionalmente considerar o Depósito a Vista como uma “aplicação”, ao respeitar seu saldo médio como a única métrica possível, pois não há juros pagos. Portanto, a mesma lógica aplicada de saldo médio para o RDC e Crédito.

2.3 – Saldo médio em RDC, Crédito e Depósito a Vista são um dos ótimos sinalizadores para pré-avaliar se é saudável a gestão comercial de uma Singular, pois deles se abstrai prévias quanto a sua eficácia na compra e venda de recursos. Assim, qualquer excesso na captação ou no crédito denota sinais de atenção.

Atenção: distribuição de sobras por juros recebidos em Fundos de investimento e Poupança?

Algumas singulares que captam fundos de investimentos devem atentar para o fato de que nenhum empréstimo poderá ser dado por esta captação, haja vista que este produto não cria nenhum funding (dinheiro para emprestar) para quem o capta. Portanto é equivocado o conceito de que o cliente que aplica em fundos, permite contrapartidas através de receitas por juros pagos no crédito. Assim, é pouco defensável utilizar o saldo médio ou mesmo os juros recebidos nas aplicações em fundos, como  referência “cheia” na distribuição das sobras. A poupança também merece destaque quanto à distribuição das Sobras. Ela tem a característica legal de direcionar boa parte de seu funding para créditos rurais, que só permitem baixíssimos spreads. Estes muitíssimo distantes dos originados pelo saldo médio em Depósito a Vista ou RDC. Assim sendo, seria prudencial rever sua participação “cheia” da poupança na sobras, seja ela pelos juros recebidos ou pelo saldo médio.

Profilaxia Conclusiva

A distribuição das Sobras é uma engenharia de percepções, portanto deve ser sempre redesenhada, repensada e gerida como algo comercialmente diferenciado e que possa ser facilmente defendida com argumentos racionais por qualquer um funcionário ou executivo, pois: “Sobras” é um prêmio para aqueles que verdadeiramente acreditam e constroem a Singular.

Diante do exposto neste artigo, ponderamos ser mais coerente legalmente e defensável comercialmente o uso do saldo médio como métrica para distribuir o valor das Sobras em uma AGO, pois respeita a magnitude dos seus 3 principais grupos de riquezas (Aplicação, Operações de Crédito e Depósito a Vista). Além do que, tecnicamente uma Singular sobrevive de saldos médios e não de juros pagos/recebidos. Mas atenção: mesmo sendo o mais sensato, ele ainda não é perfeito, pois exclui os prêmios pagos pelos seguros, tarifas pagas de: anuidade de cartão de crédito, de cobrança de títulos, de DOC/TED, de pacotes de serviços, e inúmeros outros serviços.

Doravante, dependerá de nossa profilaxia mental para que o tema: SOBRAS seja relevante para o modelo e só então é que os clientes o perceberão como um enorme diferencial competitivo.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento com Foco no Cooperativismo de Crédito

www.ricardocoelhoconsult.com.br – 41-3569-0466 – Postado em 28/07/2010