Portabilidade do Crédito – Nossos líderes e suas opiniões – artigo 01 de 04

Como o Brasil não há igual. Aqui algumas leis “pegam”, outras não. Já validamos isto em vários debates sobre normativos legais que até podem fazer muito sentido para a proteção da população, mas na prática têm uma sofrível adesão e quase nula utilidade social.

Há três prováveis pilares que fazem fracassar estas nossas regulamentações:

1- Buscam-se cópias puras de leis de sucesso aplicadas em países mais evoluídos que o nosso.

2- Falta de cultura, educação financeira e orientação para o crédito da massa de nossa população.

3- São desenhadas leis como frutos de ações políticas eleitoreiras e oportunistas frente a um pontual clamor popular, onde fatalmente o legislador apresentará a sociedade um mal feitor a ser contido, usualmente grandes empresas de capital aberto com elevado lucros e facilmente rotuladas como de baixo retorno social, com destaque aos segmentos de bancos, cigarros, cervejas etc. Neste cenário de previsibilidade do insucesso de algumas descompassadas legislações enquadramos a portabilidade creditícia, pois há uma grande chance de vermos repetida a retórica de promessas de enormes benefícios à população dita desassistida, mas de sofrível efeito prático e social.

Não há dúvidas que, em conceito, a portabilidade creditícia é uma proposta socialmente brilhante a ser apresentada por qualquer governo, e diante da qual nenhum de nós poderia ser contra, ainda mais em nosso país que vive um boom em seu crédito de varejo massificado. Ocorre que por mais forte que sejam as intenções dos governantes, nossa sociedade será sempre regida pelas “discretas” e mercantilistas práticas de nosso mercado financeiro de varejo. E diante desta realidade inconteste, há uma forte tendência de por anos a fio vermos “patinar” a portabilidade creditícia frente ao potencial original contido no relatório de viabilidade deste projeto.

Contudo, devemos chamar a atenção para um interessante fato. Dentro de alguns anos alcançaremos um volume mediano de portabilidade de crédito, mas que será obtido na quase totalidade pelo forte movimento concentrado de grandes valores oriundos de um grupo muito reduzido de créditos imobiliários, veículos e consignados de grandes valores e prazos. Portanto, a portabilidade creditícia tende a apenas vir beneficiar um reduzidíssimo número de cidadãos da classe média remediada, algo longe da massificação objetivada pelos legisladores e pelas entidades sociais que o apoiam.

Relembrando a história: vamos rapidamente relembrar algumas das recentes boas intenções que viraram leis, mas que, como a portabilidade creditícia tiveram resultados sofríveis como benefícios práticos à população:
Cadastro Positivo – Em arquivo escrito há mais de cinco anos previmos que o cadastro positivo não teria condições de decolar com as vantagens e agilidade vendidas pelas empresas que detêm o monopólio deste serviço. Após sua recente regulamentação vemos que os baixíssimos números corroboram nossas expectativas, a qual está potencializada pelo fraco espaço do tema na mídia

Pacote de Serviço Padronizado e Tarifas – Fruto de enorme estudo pelo governo na década passada para depois virar um compêndio de leis normatizando as tarifas bancárias, o qual visa principalmente proteger a sociedade da agressividade dos bancos, foi tema tratado em vários de nossos artigos a época. A grande novidade era a proposta do Pacote de Serviço Padronizado. Em conceito, se igualava a proposta dos carros 1.000, já que visava padronizar uma “cesta de serviços” a ser ofertada por todos os bancos e que atenderia 99% das demandas mais comuns dos clientes destas instituições massificadas.

Isto, em conceito, permitiria que um cidadão comum pudesse trocar de banco a qualquer momento caso achasse outra instituição com tarifas menores. Ocorre que as tarifas são apenas um dos inúmeros temas analisado pelo cliente para manter sua conta em uma instituição, mas nunca será decisiva, além do que, mais de 99% da população bancarizada sempre esteve “aderida” a um dos inúmeros pacotes comerciais do seu banco, os quais não têm nenhum interesse de divulgar seus não rentáveis pacotes padronizados. Hoje acreditamos que menos de 0,01% dos clientes estão cadastrados neste pacote dito popular, e a nova Resolução 4.196/13 tende também a ter uma pífia utilidade social. Ela cria novos pacotes padronizados como se fossem carros de cilindradas um pouco maior como 1.200, 1.400 e 1.600.

A história como testemunha: em 1.998, o HSBC, banco em que trabalhei até 2.003, importou do primeiro mundo a cultura de portabilidade de crédito acreditando que por aqui seria um sucesso. Chamou este seu grande esforço de “transfer balance” e criou uma área e um espaço físico com mais de duas dezenas de atendentes para dar vazão às inúmeras ligações esperadas dos clientes que, na visão daqueles gestores, acreditavam estar sedentos para transferir suas dívidas de outros bancos de varejo para o HSBC com desconto nas taxas. Após um enorme esforço de comunicação interna junto a seus mais de um milhão de correntistas, observou-se que foram feitas apenas um número irrisório de transferências de dívidas que não chegaram a uma centena, estas de funcionários que usualmente tinham comprado parcelado, com juros um pouco mais altos, seus computadores PC de mesa, algo caro e desejado na época. Ou seja, nem sempre o que parece sensato e racional irá funcionar em nosso mercado. O projeto “transfer balance” durou apenas 4 meses.

O rótulo de mal feitor dos bancos em nossa a sociedade: antes de continuar a subsidiar suas reflexões, devemos estar convictos que socialmente está cristalizado o preceito de que os bancos são os vilões da sociedade e que não são merecedores de aplausos. Se você já tem mais de 40 anos deve ter visto muitas histórias nervosas e desabonadoras que tiveram como protagonistas nossos bancos de varejo. Responda: Você acha que os bancos de varejo nacionais, inclusive os oficiais, são totalmente éticos e confiáveis? Colocaria sua mão no fogo diante de suas costumeiras, criativas e agressivas atitudes comerciais? Diante disto, acha que agora eles realmente estão bem intencionados frente à portabilidade creditícia lhes imposta por lei, e que vão se “unir” para reduzir os juros, pois já julgam que ela chegou a um patamar elevado?

Seria infantil acreditar neste cenário. Portanto é imprudente também acreditar que os bancos acataram estas determinações legais da portabilidade creditícia porque estavam ansiosos para mostrar a sociedade seu ainda desconhecido lado filantrópico. O fato é que eles não tinham escolha e estrategicamente, frente ao grande inimigo chamado governo, a melhor tática foi se travestir de aliado para não ser alvejado com muita força. Os bancos sabem de sua força para uma perfeita condução da política monetária do governo, e assim criam uma harmonia não explícita de interesses com o legislador. Desta forma, os bancos se mantêm sempre vivos e com enormes ganhos frente a mais rentável intermediação de dinheiro que ocorre em nosso país, além de cada vez mais ganhar com serviços bancários. Vale ressaltar que a portabilidade creditícia é algo comum há décadas em mercados maduros, aos quais nossos bancos sempre tiveram acesso. Contudo devemos nos perguntar.

Por que só agora, diante de determinação legal, os bancos passam a “apoiar” a proposta? Não lhe parece um tanto estranho?

Reflexões finais: o Cooperativismo de Crédito não deve ficar encantado com o canto da sereia oriundo da Portabilidade de Crédito. No frenesi de ganhar clientes da concorrência através da isca de taxas mais baixas em um crédito parcelado de vulto, há fortíssima tendência de termos em breve problemas pelo excesso de endividamentos destes clientes que, mesmo migrando parte de suas dívidas, passam a acessar de forma forte as linhas automáticas massificadas e generosas agora ofertadas por dois grandes bancos. Pois muito provavelmente o banco traído, visando bater suas metas ou imaginar que pode recuperar este cliente, manterá aberta linhas massificadas, as quais também muito provavelmente estarão sendo abertas no novo banco que compra a dívida parcelada.

Será temeroso vermos nossas Singulares se lançarem no mercado como grandes patrocinadoras da portabilidade de crédito, acreditando que assim vão ter uma enorme oportunidade para avançar sobre o mercado dos bancos de varejo. Ainda mais perigoso será se alguns poucos líderes ainda utilizarem o delicado e obsoleto discurso que os bancos são entidades perversas, desumanas, mercenárias que só lesam a sociedade. Portanto, por mais que uma Singular tenha momentaneamente excesso de liquidez, devem observar que são créditos elevadíssimos e longos para os quais demandam fundings substanciais, longos, indexados e travados, os quais são raros na grande maioria das nossas Singulares. Sem esquecer, que sempre atrairão com esta portabilidade creditícia apenas clientes informados, “taxeiros”, “traidores”, os quais muito em breve tendem a trair novamente aquele que hoje lhe estende a mão.

O Cooperativismo de Crédito ainda não dispõe de músculos comerciais para ser um dos grandes apoiadores dos modismos ou preciosismos da nossa política econômica, em especial da portabilidade creditícia de créditos elevados, longos e com taxas fixas. Façamos nos próximos anos apenas o simples e o óbvio junto a nossa base. Só isto já é trabalho para uma década.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Obs: a compreensão do tema Portabilidade Creditícia sobre a ótica de nossa Consultoria se dará com a leitura dos três outros artigos já postados: Reflitamos sobre meias verdades; Quem irá se beneficiar e A ótica da Legislação.

Postado em 25/06/2014

Ricardo Coelho Consult – Consultoria e Treinamento Comercial para o Cooperativismo de Crédito