Os três tipos de Sobra – Sobra Legal, Sobra Comercial e Sobra para a AGO

Com pouco mais de 11 anos, saindo do ensino primário e passando no exame seletivo chamado de “admissão” para ingresso no então ginasial, tive a sensação de que se iniciava a minha vida de adulto. Sim, pois além de poder ostentar um novo uniforme, tinha um professor para cada matéria. Mas esqueci de pensar que cada um deles era profundo especialista no que ensinava. E mesmo sendo um aluno um pouco acima da média, e vivendo em uma família enérgica e humilde de oito irmãos, sempre me preocupei muito com a forma fervorosa com que minha mãe acompanhava nossos boletins escolares, para não dar chance de haver algum descontentamento de meu saudoso pai. Até hoje minha mãe tem uma atração por estudos, com destaque para a língua portuguesa, tanto que ainda folheia prazerosamente o seu antigo dicionário Novo Aurélio para aprender novos significados ou para encontrar algum erro, os quais são anotados com uma linda caligrafia nas folhas finais desse grosso compêndio. Mas, já passado cinco décadas, sempre que visito minha mãe ela comenta se eu aprendi a escrever “pneu”, pois na quinta série a severa professora de português Adelaide me tirou um ponto na nota de redação porque escrevi “peneu”, marcando esse meu erro com destaque de uma forte caneta vermelha. Na época, não pensei que pudesse haver alguma palavra com tamanha estranheza quanto a sua ortografia. Aprendi, mas ainda é estranho.

Com base nessa introdução, nos parece natural que quando fazemos um uso frequente de algum preceito que achamos coerente, passamos a acreditar que todos ao nosso redor e os responsáveis pela legislação têm esse mesmo entendimento. Ocorre que alguns conceitos antigos e ecléticos, como é o que emoldura o significado de Sobra, ganham uma amplitude que pode transcender a razoabilidade. Dessa maneira, este artigo mostrar três atuais conceitos contraditórios das Sobras.

1º) Sobra Legal: carrega no seu bojo o correto conceito legal e contábil. É o resultado contábil anual da Singular, do qual, sendo positivo, será retirado a Reserva Legal, o FATES, e algum fundo que estatutariamente esteja previsto para aporte quando da apuração no final do ano fiscal anterior a AGO. Também será retirado desse resultado o montante destinado ao rateio quando da AGO.

2º) Sobra Comercial: é quando somamos os juros ao Capital a Sobra Legal. Esse conceito vem ganhando notoriedade em função da necessidade de darmos maior destaque racional e comercial para quanto aos ganhos promovidos por nosso modelo de negócio. Assim, sinalizando para nossos sócios e potenciais sócios que somos pujantes e melhores que os concorrentes. Permitindo então que tal percepção se expanda para a sociedade em geral. Sem dúvida, esse conceito ampliadíssimo é uma inovação comercial, e ganha real expressão depois da LC 130/99 que definitivamente proibiu o uso das Sobras como remuneração do Capital Social, definindo também a SELIC como teto para a remuneração do Capital Social. Isso, pois, o entendimento legal e do Conselho Federal de Contabilidade não considera na Sobra Legal o montante relativo à remuneração do Capital Social, já que entendem ser uma despesa do exercício. Portanto, é prudente deixar claro nas comunicações aos sócios, funcionários e à sociedade o que compõe o valor da Sobra Comercial. Assim, permitindo que entendam a relevante diferença da Sobra Comercial da Sobra Legal.

3º) Sobras à disposição dos sócios na AGO: é a parcela da Sobra Legal que, após deduzido o(s) fundo(s) estatutário(s) e o FATES, estará à disposição da AGO para que esta analise e aceite (ou não) as propostas formuladas pelo Conselho de Administração. Assim, de forma soberana, a AGO se posiciona e define o destino desse montante, podendo, inclusive, a AGO aprovar ou propor novos aportes no: FATES e/ou Reservas Legal e/ou em algum outro fundo estatutário.

Comparativos falhos “lendo” Sobras: se uma Singular divulga sua Sobra Comercial e outra sua Sobra legal, é notório que não há como fazer comparações, ainda que as duas paguem o mesmo percentual da SELIC  na remuneração do Capital Social, e mesmo que este seja nulo. Também não se pode comparar duas Singulares, se uma delas remunera o Capital Social menos que a outra, ou não o faz. A Sobra à disposição da AGO é pouco divulgada, salvo como uma das pautas da AGO.

Reflexão Final: dando a transparência requerida pela Governança, devemos usar o conceito de Sobra Legal e usar com prudência e transparência o de Sobra Comercial, haja vista que nesse caso houve um dispêndio com os juros ao Capital que não pode ser revertido pelos sócios nessa AGO.

“Peneu” é pneu, mas Sobra Legal não é Sobra Comercial ou outra modalidade qualquer de Sobra.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento com Foco no Cooperativismo de Crédito
www.ricardocoelhoconsult.com.br – 41-3569-0466 – Postado em 19/01/2017