O voto digital eliminará o voto delegado?

Em 1971, era crescente a guerra do Vietnã e, com o apoio da artilharia americana, o Vietnã do Sul invadiu o Laos. Meses depois, mais de 500 mil americanos marcharam contra a Guerra do Vietnã, em Washington, DC. Naquele mesmo ano, a Intel lançou o primeiro microprocessador do mundo, o Intel 4004. Como se vê, lá se vão meio século. Já se passou tanto tempo que essas notícias até soam estranhas ao nosso cotidiano.

Então, por que não questionarmos os valores e princípios que há meio século levaram a edificação da Lei Cooperativista 5.764/71, que, apesar de ser atual para a época, traz hoje consigo algumas questionáveis diretrizes, as quais merecem ser debatidas abertamente, como a função atual de um delegado na cooperativa? A função detalhada do delegado nessa Lei cinquentenária era compreensível à época, haja vista que a tecnologia era insipiente, as estradas eram poucas e ruins, poucos possuíam carro, as informações eram escassas, a população tinha baixa escolaridade, as economias eram primárias e muito regionalizadas etc.. Mas tudo isso mudou!

O BC sinaliza o voto digital: Hoje, há sinais claros de que teremos de rever a adesão da Singular à figura do delegado, mesmo que o tenha rotulado internamente de nomes mais suaves, tirando a empáfia carregada pelo termo “delegado”. Isso, pois, a representatividade dele apresenta crescentes imperfeições, tanto que o Banco Central, através de seu projeto “BC+/#”, sinaliza formalmente que muito em breve teremos a realização e votação de assembleias preferencialmente por meios digitais. Claro que ele no início irá sugerir, mas depois deverá impor que as assembleias sejam feitas 100% de forma aberta em sites e aplicativos oficiais da Singular, onde o sócio acessará esses canais com sua senha eletrônica. Por outro lado, deverá ainda permitir que sócios com menor afinidade com a tecnologia votem em caixas automáticos, teclados dos caixas humanos ou em outra solução eletrônica amigável e segura. Além disso, deve também exigir auditoria independente nessas votações.

Novos estresses para a perenidade e sucessão: Fica claro que 100% dos sócios recuperarão seu direito de votar, mesmo aqueles que ingressaram na cooperativa após essa adotar o voto por delegado. Isso pode, eventualmente, causar um enorme estresse na condução da perenidade da Singular, haja vista que, com as novas mídias, grupos mais orquestrados podem obter o “mando” da Singular quando das eleições, gerando um descompasso no planejamento estratégico e, por vezes, também na visão do meio socioeconômico onde competem. Contudo, não devemos esquecer que, dentro de poucos anos haverá uma nova votação com um ainda maior frenesi tecnológico, na qual poderá ser eleita, até mesmo, uma nova gestão, distinta da anterior que recém assumiu a Singular. Assim, poderá, inclusive, pela pouca constância e efetiva rotatividade na liderança, colocar em xeque sua perenidade diante de um mercado dinâmico e hiper competitivo.

Perante isso, devemos ter sempre em mente que muito do que foi conquistado nas Singulares é mérito de um grupo coeso que encampa há décadas o projeto de perenidade dessas instituições. E nesse modelo de negócio toda mudança tem enorme impacto, ainda mais se a nova equipe de gestão em nada tiver envolvimento com o projeto de sucessão orquestrado pela situação, algo perseguido e defendido pelo Banco Central. Mas uma análise mais minuciosa da sucessão em nossas Singulares e suas eventuais imperfeições será tema para outro artigo.

O voto digital se alinha aos princípios cooperativistas: Vale relembrar que os princípios originais dos artesãos de Rochdale, desde os idos de 1844, se mantiveram alinhados às novas estruturas de cooperativas, sendo revisados em 1995 pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI). Dentre os sete princípios, destacamos três deles que enfatizam a necessidade da participação dos sócios na gestão da sua instituição. São eles:

As três modalidades imperfeitas de delegados: Devemos doravante focar na perda abrupta da significância dos delegados diante da inevitável votação eletrônica em nossas Assembleias. Isso, pois há sinais claros de que o Banco Central não deseja manter os delegados votando, ainda que isso contrarie o disposto no estatuto da Singular. E isso ocorre, independentemente de se optar por uma das três aplicações academicamente reconhecidas quanto ao voto de delegado nas assembleias, a saber:

Como se vê, existindo três modelos tão antagônicos de atuação de delegados, os quais são de livre escolha de cada Singular, se constata que cada um deles tem imperfeições, as quais dificilmente seriam sanadas com a manutenção, mesmo que evolutiva, de votos por delegados. Assim sendo, o voto digital tem predicativos para eliminar essas imperfeições dessas representações, as quais tendem a crescer na proporção que se agigantam nossas Singulares.

Perda de função da tradicional Assembleia: Com o voto digital, os sócios devem ficar liberados para votar de qualquer lugar do planeta, e o deverão fazê-lo no dia da assembleia (ou em tempo real frente à apresentação por vídeo dos temas da pauta), sem “ter de ir” ao local físico onde é realizada. Isso sinaliza uma perda na interação e discussão direta dos itens pautados como hoje se vê nas assembleias, com participação efetiva dos sócios votantes (não por delegados). Algo que pode resvalar na atratividade das pré-assembleias, que deverão ser precedidas por uma intensa comunicação digital a todos os sócios, tendo em vista que o voto de cada sócio terá o mesmo valor, independente de ele ter se atualizado sobre as pautas apresentadas na pré-assembleia. Dessa forma, esse novo e inevitável contexto trará a nossos líderes grandes desafios para manterem e elevarem sua representatividade administrativa e sucessória, bem como exigirá extrema atenção à eficácia da governança corporativa.

O futuro dos delegados: É nítido que o legislador quer instigar a representatividade de 100% dos sócios através de uma votação digital, facilitada e decorrente de proativa e simples comunicação, já que eles são donos e, como tal, irão participar dos resultados, sejam eles positivos ou não. Para o legislador, sendo eles donos, devem reconquistar essa distinta condição, elevando substancialmente suas participações no destino da instituição. Isso, pois, caso mantenham um baixo nível de envolvimento, nossos sócios se aproximam de meros clientes, como se vê em um banco de varejo.

Assim, veremos algo inédito. Meio século após promulgar a Lei 5.764/71, o legislador determinará uma “inovação-reversa”, retirando de suas normas a figura do delegado, que será mantida, muito eventualmente, em meras exceções. Percebamos que é coerente que assim o seja, já que não mais existem os predicativos negativos, logísticos e técnicos que o levaram a optar por essa forma há meio século. A tecnologia ganha serventia, inclusive, para darmos mais transparência e participação em nossas assembleias, momento em que nossos sócios devem assumir estatutariamente seu papel de donos, protagonistas e gestores do futuro da sua instituição.

Reflexões finais: Caso os conselhos e diretorias de Singulares com votos por delegados considerem coerentes essas exposições de motivos, seria prudente discutirem de forma assertiva o impacto e as oportunidades advindas desse novo cenário sem a figura dos atuais delegados. Isso permitirá que gradualmente se reconheçam novos atributos para antecipar estratégias visando uma mudança orquestrada, sem penalizar o cotidiano e perpetuação da instituição.

Não resta dúvida de que esse é mais um árduo desafio para nossos líderes, mas, como toda mudança, ela também é fruto da natural e esperada evolução de nosso modelo de negócio.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento com Foco no Cooperativismo de Crédito

www.ricardocoelhoconsult.com.br – 41-3569-0466 – Postado em 18/07/2019