O Caminho de Santiago nos ensina a desapegar de clientes “tranqueiras”

Tive a felicidade de ter feito em 2012 e agora em maio de 2017, a pé, os 800 km do Caminho de Santiago. Nessa última vez, eu e minha esposa refizemos o caminho acompanhados por uma de nossas filhas. Esse caminho chama-se Francês por sair das montanhas Pirineus que fazem fronteira com a França e a Espanha, e cruzam todo o norte da Espanha, indo até a costa no Atlântico Norte, onde está localizada a bela cidade e a igreja de Santiago de Compostela. Em uma primeira análise, pode parecer um tanto quanto difícil fazer 800 km a pé em um mês, mas posso afirmar que foi imensamente prazeroso fazê-lo, ainda mais por andarmos de mochila, dormirmos em albergues, convivermos ora com muito frio, ora com muito calor, fortes chuvas e vento, além das intermináveis subidas e descidas, sempre acompanhadas por trilhas de muitas pedras. Contudo, esse esforço sempre nos presenteia com algumas dores, bolhas etc., o que é natural e que se supera facilmente frente ao foco maior de concluir esse “pequeno” desafio. O resumo é que tudo valeu muito a pena, pois além da beleza dos lugares, a qual se aprecia lentamente ao andar, há uma riqueza cultural ímpar devido ao convívio com peregrinos do mundo todo, que também nutrem o mesmo desafio de chegar andando a Santiago.

Um aprendizado do caminho: andando dia após dia em média de 7 a 9 horas diárias não há como não ter tempo para fazer correlações desse desafio com a nossa vida profissional. E um dos aprendizados do caminho é que, se efetivamente desejamos chegar ao nosso destino, devemos desapegar de coisas que não serão úteis nessa caminhada de 800 km. E, para tanto, devemos deixar como doação nos lugares predefinidos nos albergues tudo aquilo que trouxemos em excesso em nossa mochila. Assim, só se deve carregar no caminho aquilo que é essencial. Se isso é tão óbvio no desafio dessa caminhada, pensei por que muitas de nossas Singulares teimam em manter e atender a um grupo de clientes desregrados comercialmente, esses há anos já não se portam como sócios, ou ainda, só nos procuram por identificarem algumas brechas em nossa gestão.

Clientes “tranqueiras”

Há mais de uma década venho didaticamente rotulando esses clientes como “tranqueiras”, pois assim fica internalizado o entendimento aos meus interlocutores do malefício que eles trazem à “caminhada” da Singular. Esses “tranqueiras” diariamente tomam muito tempo de nossos gestores, além de expor a sociedade uma imagem negativa quanto ao quilate de nossos associados, já que muito provavelmente o comércio e a sociedade já estão sendo diretamente afetados por ações desses nossos sócios desregrados comercialmente. Fazem enganosamente muita “espuma” como se fossem ativos e rentáveis clientes, e nos direcionam apenas aquilo não permitido no mercado ou ao que é muito mais caro nos concorrentes ou feitos por nós, sem exigência de elevada reciprocidade. O curioso é que esses clientes “tranqueiras” têm uma facilidade acima da média para transmitir ao nosso quadro gerencial a ideia de que estão encantados com nosso atendimento e, assim, pela recorrência desses contatos há uma tendência natural de nosso quadro comercial de expandir equivocadamente essa percepção de bom atendimento a nossos reais e bons clientes. Contudo, o que se vê na prática é que esses clientes desregrados comercialmente pouco ou nada trazem de saudável para o resultado comercial, além de dar a sociedade, onde competimos, a impressão de que somos pouco seletivos na escolha dos nossos sócios, o que indiretamente encarece nossa captação e emperra a conquista de bons clientes.

Expurguemos nossos clientes “tranqueiras”

Concordamos que não é simples explicar em uma assembleia que o número de sócios não cresceu, alegando que esse fato é resultado de uma ação gradual para expurgar do quadro societário aqueles sócios desregrados comercialmente, os quais sorrateiramente minam o projeto de perpetuação da Singular. Mas, como líderes precisamos repassar essa anomalia aos nossos profissionais e, ao mesmo tempo, propor ações efetivas para a redução substancial de nossa exposição a sócios “tranqueiras”. E isso precisa ser uma ação orquestrada de forma discreta, gradual e frequente, haja vista que na grande maioria dos casos foi a própria Singular que criou ou deixou crescer a relevância desses clientes “tranqueiras”, através de ações “amigáveis e parceiras,” descompassadas com as boas práticas formais de gestão. Tudo isso ainda agravado pelo uso de balizadores equivocados na definição das metas, premiação, promoção etc.

Estaríamos ainda alimentando clientes “tranqueiras”?

Muito provavelmente parte de nosso residual comportamento benevolente com clientes “tranqueiras” é fruto de um discurso de mais de uma década, que visa nos distanciar dos “temidos” e “insensatos” bancos de primeira linha. Discurso esse que, por sorte, vem se esvaziando e nos permitindo aprender muito com a racionalidade desses concorrentes. O importante é ressaltar que muitos desses nossos “processos diferenciados,” permitidos por muitas Singulares aos seus clientes “tranqueiras,” não se verificam em bancos de primeira linha, e mesmo que esses os façam, haveria um ônus elevadíssimo e baixa compaixão para recorrências. Alguns serviços de processos caros e estressantes como folha de pagamento e serviço de malote só são permitidos a grandes clientes com efetiva reciprocidade. Portanto, não é hora de buscar no passado as origens desses problemas, mas, sim, de pôr em prática ações que gradualmente retirem esses maus hábitos de nossa base e minimizem o enorme e sorrateiro impacto que ainda causam em muitas de nossas Singulares.

Quatro ações discretas contra os “tranqueiras”

Nesse cenário, sugerimos inicialmente quatro ações discretas para reduzirmos drasticamente o estresse e os danos causados por esses clientes desregrados, haja vista que muito provavelmente fomos coniventes com essas “facilidades”:

Primeira ação discreta: orientar nosso quadro funcional para que interajam de forma assertiva junto a seus clientes “tranqueiras”, focando primeiramente naqueles de maior recorrência, de maior vulto ou de maior potencial de exposição negativa de nossa imagem a sociedade. Assim, gradualmente irão reduzir e, se possível, eliminar tais ocorrências. Aqui orientamos para que nossos gerentes não se exponham junto a esses clientes “tranqueiras”, evitando que esses julguem essas ações mais drásticas como sendo uma decisão de cunho pessoal. Uma sugestão oportuna é que ao contatarem esses clientes desregrados utilizem sempre a referência de que tal ação foi determinada por uma entidade superior e plural, sobre a qual nem o funcionário, nem a diretoria tem acesso, como: apontamento da auditoria, novo normativo do BC etc. Mas sempre mencionando que essa determinação tem um prazo “x” para que a Singular resolva esse descompasso específico desse cliente.

Segunda ação discreta: mesmo que não haja sistema tecnológico para a ação que iremos descrever, deve-se mesmo que de forma gerencial excluir do computo da rentabilidade desse cliente (e da agência) toda a rentabilidade não saudável (mora, multa, tarifas punitivas…) advinda desses clientes “tranqueiras”, retirando também esse montante do atingimento das metas. Isso pode ser ainda mais explícito, se for decidido que toda a rentabilidade de clientes “tranqueiras” com risco acima de “x” não serão computados nas posições para o atingimento de metas. Isso evitará que os gerentes equivocadamente tentem bater suas metas com base em rentabilidades “não saudáveis” oriundas de clientes “tranqueiras”, fazendo-os focar em esforços comerciais saudáveis.

Terceira ação discreta: envolver o quadro comercial das agências para que apresentem ações discretas e corretivas frente aos clientes “tranqueiras”, bem como orientar que essas sejam implementadas gradualmente nos próximos seis meses para que algumas arestas consigam ser aparadas. Assim, gradualmente irão adotar ações junto a esses clientes desregrados, focando nos grandes riscos e naqueles que demandam fortes processos e retrabalhos, para evitar a ocorrência de novos fatos.

Quarta ação discreta: “congelar” esses clientes desregrados, para que não mais os atendamos enquanto adotarem ações comportamentais que nos deem essa prerrogativa estatutária ou comercial. Desta feita, não mais serão considerados clientes ativos e, assim sendo, seus dados não entram nas bases de gestão e nas metas. Para reforçar essa ação, esses sócios desregrados devem ser formalmente relembrados do conceito de sócio e sociedade e dos preceitos comerciais que norteiam a Singular. E caso não se ajustem devem ser formalmente eliminados.

Reflexões Finais: os cuidados apresentados nesse artigo permitem que a Singular foque em atender e aplaudir seus bons sócios, sejam eles investidores e/ou tomadores de crédito e/ou usuários de nossos serviços ou de terceiros. Contudo, o simples fato de haver uma eventual fraca liquidez de um sócio não é o bastante para rotulá-lo como um sócio “tranqueira”.

Por fim, tal qual fazem os peregrinos diante dos 800 km a pé do caminho de Santiago de Compostela, devemos nos desapegar dos nossos clientes “tranqueiras”. Para tanto, devemos adotar atitudes assertivas para que não mais surja essa estirpe de clientes e que, os já existentes em nossa base, sejam gradualmente “congelados” ou até demitidos da sociedade. Essa ação é saudável e imprescindível, pois assim os devolveremos a nossos concorrentes, de onde nunca deviam ter saído.

Aos sócios desregrados, no mínimo, a mesma severidade dos bancos.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento com Foco no Cooperativismo de Crédito
www.ricardocoelhoconsult.com.br – 41-3569-0466 – Postado em 19/06/2017