Nossas duas castas no rateio das Sobras

Tudo tende a características binárias. Um polo positivo e o outro negativo, um macho e outra fêmea, um rico e outro pobre, um compra e outro vende etc.. Isso parece lógico e o vemos internalizado no Cooperativismo de Crédito. Ele é o único formato do Cooperativismo que consegue fechar o ciclo comercial para o qual foi criado, comprando e vendendo diretamente entre seus sócios, sem necessitar da intervenção do Sr. Mercado em nenhuma das pontas do seu negócio. Isso, pois, de forma resumida, fomos constituídos para intermediar a venda e a compra de recursos entre nossos sócios, algo que não existe nos demais formatos tradicionais de cooperativismo, onde a figura do Sr. Mercado está sempre presente na ponta compradora ou fornecedora de bens de uma cooperativa.

Essa discreta, mas consistente diferença, faz com que adotemos uma maneira distinta de gerir uma Cooperativa de Crédito, a qual indiretamente nos permite ser criativos quando do rateio das Sobras. Diante disso, a seguir apresentaremos nossas ponderações, e, caso deseje um apoio visual para melhor compreensão das explanações desse artigo, anexaremos um didático desenho antes das reflexões finais.

O Sr. Mercado sempre está de um lado do negócio cooperativista: As Cooperativas, exceto as de Crédito, sempre têm a figura marcante do Sr. Mercado em um dos lados, seja na compra ou na venda. No caso de uma Cooperativa Agropecuária, ela não recompra o que vende, já que os produtos como leite, grãos, aves etc. são-lhes entregues por seus sócios e, após, ela os vende ao Sr. Mercado. Esse movimento deixa claro o objetivo da Cooperativa, o qual normalmente está expresso na sua denominação estatutária.

Mas, ao avançarmos na abordagem de venda da produção, do resultado e das Sobras de uma cooperativa de leite (ex.), veremos que ela tem sócios pecuaristas que entregam produtos que serão vendidos por sua cooperativa ao Sr. Mercado, potencializando que as Sobras sejam distribuídas na proporção do volume de leite entregue por cada produtor durante o ano. A mesma lógica será aplicada por uma cooperativa de grãos, já que após “comprar” a produção lhe entregue por seus sócios, promoverá a venda ao Sr. Mercado, permitindo, então, que seja retirada dessa transação comercial a parcela líquida que irá compor as Sobras. O volume de produção entregue por cada um desses sócios agropecuaristas é que baliza a sua parte no rateio das Sobras. Portanto, esse rateio segue uma lógica matemática simples: Sobras/Produção entregue.

O Sr. Mercado não está no Cooperativismo de Crédito: Se acima vimos que o Sr. Mercado está sempre do lado da compra da produção dos sócios das tradicionais Cooperativas, essa realidade não é observada no Cooperativismo de Crédito. Isso, pois, a oferta da matéria prima (dinheiro para emprestar), aqui entendida didaticamente como produção, vem dos sócios investidores, e esses recursos geram empréstimos a serem tomados pela outra parcela dos sócios dessa mesma Singular. Significa dizer que, no Cooperativismo de Crédito, o Sr. Mercado não está em nenhum dos lados do negócio, já que seus sócios poupam recursos, que junto com a evolução do Capital Social e da Reserva fomentada pela totalidade dos sócios, mantêm a dinâmica carteira de crédito, que será tomada pelo outro grupo de sócios. Portanto, estamos analisando uma exclusividade conceitual e operacional que só existe em uma Cooperativa de Crédito que, sem a interferência do Sr. Mercado, realiza e dá giro na íntegra a sua finalidade estatutária e comercial: ser essencialmente uma cooperativa que dá crédito.

Então o que muda sem o Sr. Mercado no Cooperativismo de Crédito? Ocorre que no dia a dia da gestão dessas cooperativas aparecem preferências, mesmo que não propositais, por um dos dois grandes grupos de sócios: investidor ou tomador. O que pode ser observado na oferta de soluções, características de preços, estruturas físicas e sistêmicas, etc. Isso é algo até simples de se entender, mas diante do fato doravante apresentado, veremos que também no rateio das Sobras em Cooperativa de Crédito se vê benefícios a um desses grandes grupos de sócios. Nessa contextualização didática serão apenas dois grupos, um formado pelos investidores, que, em conceito, entregam a sua “produção” na Singular, dando início, assim, ao ciclo para o qual essa instituição foi edificada (dar crédito). E o outro grupo composto pelos sócios tomadores de crédito.

E, para compreender esse fato, devemos nos fixar na lógica da distribuição das Sobras, que em nosso modelo de negócio é diferente da lógica matemática purista dos demais modelos de cooperativas, já que esses primam por balizar o rateio das Sobras em um único cálculo matemático que leva em consideração apenas a produção entregue.

Passemos, então, a analisar como a lógica que imprimimos na distribuição das Sobras nos distingue dos demais ramos do cooperativismo tradicional, e como isso nos obriga a refletir sobre o atendimento dos valores e dos sete princípios cooperativistas que nos balizam.

Nossas Sobras têm denominadores dinâmicos e voláteis: Imaginemos que tenhamos uma Cooperativa de Crédito com 1.000 sócios ativos e que ela apresente na AGO uma Sobra de R$ 1.000.000,00, que será distribuída em partes iguais para seus sócios das duas castas: investidores e tomadores, ou seja, R$ 500.000,00 para cada uma delas. Em uma primeira leitura essa divisão parece lógica, já que há anos assim a fazemos, mas precisamos refletir sobre a distribuição monetária efetiva entre os sócios com perfis investidores e tomadores, que usualmente são encontrados em uma Singular na proporção de 20% de investidores e 80% de tomadores.

Duas castas de sócios: Visando uma melhor didática separamos os sócios em apenas dois grandes grupos: Investidores e Tomadores. Assim sendo, nessa hipotética instituição que tem 1.000 sócios, terá 200 (20%) investidores, os quais irão receber 50% das Sobras (R$ 500.000,00), o que dará a cada um deles, em média, R$ 2.500,00 (R$ 500.000,00/200). Já os outros R$ 500.000,00 das Sobras serão distribuídos entre os 800 sócios tomadores (80% da base), dando a cada um deles, em média, um valor de R$ 625,00 (R$ 500.000,00/800). Como se vê, um sócio investidor tem um potencial de receber R$ 2.500,00 no rateio das Sobras contra R$ 625,00 do tomador, ou seja, oito (8) vezes mais. Aqui é que inicia nosso diferencial em relação aos demais ramos do cooperativismo quanto à lógica a ser aplicada na distribuição das Sobras. Vamos entender:

Primeiro movimento nas Sobras: Cada um desses grupos de interesses (castas) passa a ser tratados como se uma cooperativa o fosse, já que os dois têm funções antagônicas na Singular. Um vende (aplica) recursos e o outro os compra (toma crédito), sem que tenhamos o Sr. Mercado fazendo o papel de comprador ou vendedor. Contudo, nesse hipotético estudo frente a distribuição  das Sobras de R$ 1.000.000,00, cada grupo passa a ter R$ 500.000,00 (50%) para esse rateio entre os sócios de sua casta (investidor ou tomador), e somente a partir desse primeiro movimento é que passamos a iniciar a mesma lógica de rateio das cooperativas tradicionais.

Portanto, esses grupos se portam, nesse primeiro movimento, como se fossem Singulares distintas (Singular investidora e Singular tomadora), e serão bonificados pela “produção” que entregaram ou consumiram em sua específica instituição. Esse primeiro movimento no qual “fatiamos” as Sobras em castas (vendedor e comprador) é uma criatividade só existente no cooperativismo de crédito, não se aplicando às tradicionais cooperativas.

Segundo movimento nas Sobras: Esse é o movimento final para a definição do rateio das Sobras em uma Cooperativa de Crédito. Depois de no primeiro movimento “dividirmos a pizza” das Sobras entre as duas castas (investidores e tomadores), iniciamos o segundo movimento para concluir o rateio das Sobras. Esse movimento, então, se alinha ao conceito de “entrega de produção” das Cooperativas tradicionais, pois ele se sintetiza na “compra de produção financeira” dos sócios investidores pela Cooperativa de Crédito para fazer frente à “venda da produção financeira” para sócios tomadores de crédito.

Se considerarmos a Cooperativa de Crédito como sendo duas Singulares distintas no rateio das Sobras, veremos que essa analogia é correta, pois nas tradicionais cooperativas há um único movimento para a definição das Sobras, focando basicamente nos volumes de produção entregues (ou comprados) pelos sócios na Cooperativa no ano anterior a AGO.

Então, nesse segundo movimento, encerramos o processo de distribuição das Sobras. Nele, teremos de aplicar sobre cada uma dessas fatias de R$ 500.000,00 novas inferências matemáticas (não necessariamente lógicas) para concluir o rateio do que cabe a cada sócio dessas distintas castas. Como, por exemplo, o saldo médio em aplicação, volume de juros pagos (e não saldo médio), além de usualmente adicionarmos novos itens como saldo médio em depósito à vista etc. Esse descompasso já foi tema de vários artigos explicitando a fraca lógica comercial e societária desses rateios. Contudo, ainda não havíamos incluído em nossas reflexões os impactos do primeiro movimento do rateio, no qual dividimos nossos sócios em duas fictícias Singulares, tornando-os sócios de castas distintas. Algo inexistente nos demais modelos cooperativistas.

Quadro Resumo Didático:

206 - NOSSAS DUAS CASTAS NO RATEIO DAS SOBRAS

Reflexões finais: Fica demonstrado que o Sr. Mercado não interfere na gestão macro e no cotidiano de nossas Cooperativas de Crédito, gerando um modelo único de negócio não comparável com as demais cooperativas tradicionais, o que requer uma gestão também única.

Portanto, nos parece ser oportuno questionar a racionalidade da lógica criativa que adotamos na distribuição das Sobras, pois, no cooperativismo só nós compramos e vendemos nossa produção através de nossos cooperados, o que se por um lado nos fortalece quanto à defesa do ato cooperativo, por outro nos leva a refletir quanto à efetiva aplicação dos valores e dos princípios cooperativistas.

Esse artigo não é binário, pois não conclui estar correta ou não nossas explanações, contudo ele amplia nossas inquietudes.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento com Foco no Cooperativismo de Crédito
www.ricardocoelhoconsult.com.br – 41-3569-0466 – Postado em 19/03/2018