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Mora – Os 1000 nomes de uma meia verdade

Logo que entrei no banco, em meados da década de 70, sempre que ia fazer alguma ponderação a meu chefe, ele logo dizia: “Tudo bem, mas espera aí”. Com esta frase matadora, sabia que ele iria detonar minha linha de pensamento valendo-se de sua incrível vivência e habilidade de argumentação. Esta breve introdução é apenas para alertar para a força de uma boa argumentação na defesa de um novo ponto de vista, o qual pode se converter em uma verdade.

Assim sendo, trataremos doravante de um intrigante tema que há décadas acompanhamos e para o qual ainda não formulamos uma verdade cristalina. Utilizaremos um cabedal de argumentações para reavivar e contrapor as premissas desta antiga verdade, mas pedimos que esqueçamo-nos de nossos paradigmas, já que objetivamos uma ampla e oxigenada reflexão sobre o tema.

Imputando ônus ao inadimplente

Falaremos do ônus a ser imputado a clientes inadimplentes de créditos parcelados. Este é um dos temas mais ardilosos que podemos encontrar frente a gestão de uma instituição financeira. É fácil obtermos concordância de que o cliente deve sofrer um pênalti financeiro visando reparar os danos causados por ter rompido unilateralmente o contrato. Também concordamos que, sendo nós um modelo cooperativista, este valor deve ser suficiente para reparar parte da confiança anteriormente nele depositada, remunerar o risco implícito na concessão, repor o custo de oportunidade perdido e reembolsar o ônus do processo e o estresse decorrente da inadimplência.

Pela sua experiência, certamente você agregaria novas ponderações ao defender que este ônus ao inadimplente deverá também contemplar outros vários interesses da Singular como: o gerenciamento eficaz do funding, o monitoramento da qualidade da carteira, a força da área de cobrança, as receitas punitivas, o risco do crescimento da estrutura não comercial, a posição da Singular no ranking da central etc. Mas, muito provavelmente também diria que tudo isto deveria estar regrado pelo manto da legalidade. Certo? “Tudo bem, mais espera aí”. Observando a prática mercadológica, aparentemente não seria esta a resposta mais prudente para um executivo de um “banco”. Acreditamos que o mais plausível seria respondermos: depende.

Depende

Esta será a linha de argumentação deste incisivo artigo, o qual abordará detalhes delicados que norteiam este tema e que raramente são tratados com a devida clareza e profundidade necessária. Este artigo não tentará concluir irrefutáveis novas verdades, mas certamente dará subsídios para que os gestores do cooperativismo de crédito possam rever seus julgamentos, desenhando por si e para si uma nova linha de argumentação e, talvez, até de ação.

O que é lei e o que é praxe social

Percebemos que na prática muitas das cooperativas de crédito adotam como teto legal para pênaltis aos seus inadimplentes a soma da multa de 2% e a mora de 1% a.m. Mas, é só isto que a lei permite? Então por que o mercado financeiro tradicional não se limita a aplicar estes percentuais? Quem está certo: nós ou os bancos de varejo? Vejamos.

Tente ficar inadimplente em um crédito parcelado em um dos grandes bancos como: Banco do Brasil, Caixa Econômica, Itaú, HSBC, Bradesco etc. Perceberá que seu ônus total será muito mais que o balizado pela multa e mora, podendo chegar facilmente a mais de 15% a.m. Pergunta-se: como as instituições financeiras conseguem pênaltis tão altos?

Simples. Utilizam-se a mais de 25 anos das prerrogativas da Resolução 1.129 de 15/05/86. Ela permitiu um porto seguro para os bancos, os quais criaram para si a engenhosa e rica: Taxa de Comissão de Permanência. Sem, contudo, ferirem a prerrogativa de Multa de 2% e da Mora de 1% a.m. já que estas certamente estarão como coadjuvante no valor punitivo total a ser pago pelo inadimplente. A este cenário desfavorável aos inadimplentes, soma-se a benesse de que as instituições financeiras ainda não são alcançadas pelo Código de Defesa do Consumidor, quanto à definição da remuneração e dos custos das operações de intermediação de dinheiro na economia. Situação esta que enquadra a Taxa de Comissão de Permanência.

Fica tácito que a Taxa de Comissão de Permanência é a válvula de escape das instituições financeiras para cobrarem encargos punitivos elevadíssimos dos créditos parcelados. Mas atenção. Não façamos aqui juízo de valor se o ônus ao inadimplente é muito ou pouco. Não estamos aptos a julgar, pois há uma forte tendência de nossa régua ser muito mais sentimental, social ou exacerbadamente cooperativista que a régua “necessária” de verdadeiros executivos de instituições financeiras. Lembremo-nos que estamos falando de tarifas punitivas oriundas da quebra unilateral de um contrato, bem como, de que não é a elevada “multa” do banco que fez o cliente tornar-se inadimplente. Cabe aqui ressaltarmos que é usual vermos a redução dos pênaltis por inadimplência quando de um acordo parcial da dívida ou de sua renegociação.

Mas devemos nos policiar para que esta benesse na negociação só ocorra se tivermos clareza de que o perfil do devedor é bom, não contumaz, e que ele pode e deve ser ajudado. Portanto, o trato com inadimplentes é sempre pontual, baseado no julgamento dinâmico do negociador. Donde se conclui que, será equivocada qualquer ação pasteurizada neste cenário.

Defensável – O que é?

Em minhas consultas “by Google” não consegui verificar um único banco que tenha perdido uma causa judicial na mais alta corte por aplicar a Taxa Comissão de Permanência em patamares médios aos praticados pelos seus concorrentes. Tanto que na Súmula 296 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) define que: “Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado.”Portanto admiti-se formalmente a cobrança da Taxa de Comissão de Permanência quando da inadimplência, bem como define que seu patamar máximo será a média praticada pelo mercado dos bancos, pois o BC “não estipula taxa média”, apenas a calcula e a divulga. Quanto a frase final desta Súmula“limitada ao percentual contratado”, se observa que é um esforço para colocar algum teto, mas é raríssimo vermos contratos que defina qual será a taxa de Comissão de Permanência. Portanto a razoabilidade da Taxa de Comissão de Permanência será aquela praticada pelo mercado.

Sem dúvida, a utilização da Taxa de Comissão de Permanência é um dos grandes aprendizados que o cooperativismo de crédito deve ter com seus concorrentes diretos. Um aprendizado que pode se resumir no perfeito uso do termo defensável. Defensável é tudo aquilo que não é explícito na lei ou nas jurisprudências, mas que é considerado uma prática socialmente aceita, seja pela sua intensa ocorrência no cotidiano ou pela sua moderada coerência legal. Aqui precisamos de excelentes advogados que, além de nos posicionar sobre o conteúdo formal da lei, sejam estudiosos e apaixonados pelo nosso modelo de negócio, e nos orientem quanto ao que seja defensável e o risco potencializado caso optemos por esta decisão. Como nos bancos de varejo, a decisão final é do executivo. Avião sempre cairá, e nem por isso deixamos de voar. Inadimplentes sempre existirão e nem por isso pararemos de conceder crédito. Agimos para que não haja ações trabalhistas, mas elas vão existir. Como executivos, temos que ter argumentação defensável para nossos atos.

Nomenclatura é o que menos importa

Para os usuais clientes, o cotidiano reduziu o conceito legal de “mora” e o ampliou como algo empacotado e confuso. Isto fica claro ao vermos que um cliente desconhece o que são as várias nomenclaturas que ouvirá quando estiver inadimplente: Multa, Mora, Encargos Financeiros, Taxa de Comissão de Permanência, Encargos Moratórios etc. O cliente inadimplente sabe que sofrerá fortes penalizações, bem como que quando for regularizar sua situação terá que apenas pagar um único valor acordado. Valor este que será debitado em sua conta corrente em um único lançamento utilizando-se de um histórico que em nada lembrará as multas punitivas. Portanto, sem explicitar o que é a prestação, multa, mora, encargos, taxa, tarifa etc. E o mais curioso é que isto é algo usual para eles, pois é assim que ocorre ao liquidar com atraso um boleto de cobrança.

Fica tácito que não é relevante a nomenclatura do “pênalti” para quem irá pagar, e sim se este novo montante (principal + pênalti) é minimamente coerente e factível de se pagar, pois assim o cliente sairá da desconfortável condição de inadimplente. Entendo que esta redação agride preceitos do bom senso, mas relembramos que a prática comercial nos apresenta como indubitável que quanto mais esclarecido for nosso cliente, pior será nossa negociação. Mas atenção: não fiquemos com dó de nosso cliente inadimplente. Ele não nos avisou que iria ficar inadimplente quando veio solicitar o crédito, ou antes, de atrasar a parcela, apesar de até prevermos esta indesejável probabilidade. Já que ocorreu, pênalti ao infrator. Se o pênalti na lei for brando, que tenhamos boas argumentações e bons defensores para o aplicarmos em níveis próximos ao dos bancos.

A explicitação das regras punitivas

Os grandes bancos adotam o preceito de simplicidade no processo de abertura de conta corrente, onde embuti as premissas das linhas de crédito pré-aprovado, do cartão de crédito, dos débitos automáticos etc. Para tanto, ao assinar este termo simplificado, o cliente declara que realmente teve acesso e leu um documento de 20 páginas denominado de Condições Gerais a qual está registrado em um cartório em uma capital distante. Neste “elefante branco” estão as regras deste novo relacionamento comercial. Certamente este documento sempre terá surpresas para o cliente, pois não será ele o primeiro em milhões a ter paciência de lê-lo e guardá-lo. Isto sem contar que é insano para qualquer cliente atualizar sua cópia deste contrato a cada atualização do banco. O banco rotula este processo de simples e ético, mas é um presente de grego aos clientes.

Relevância do ônus alto

Um dos grandes triunfos dos bancos ao adotarem altos pênaltis para seus inadimplentes é que sua carteira de crédito tende a ter uma inadimplência verdadeiramente real, pois reflete a exata condição de falta de liquidez dos seus clientes. Quando somos benevolentes com os pênaltis, que é o caso do cooperativismo de crédito, criamos inadimplência acima do desejado, pois o cliente sabe que, ao atrasar, contará com nossa frouxidão na cobrança e que desfrutará de um suave pênalti. Suave, pois a multa e a mora somadas à taxa do crédito são bem menores que o próprio uso do cheque especial ou de outra linha de crédito massificada de curto prazo. Portanto, por mais intrigante que pareça, é economicamente racional que os clientes com parcial problema de liquidez ou eventual falta de giro financeiro atrasem suas parcelas devidas a nossa Singular.

Outro aspecto relevante é que os bancos precificam muito mais seus créditos e aplicam altos pênaltis a sua carteira de inadimplentes, o que torna muito rentável sua carteira de crédito massificada. Isto permite mais agressividade na concessão de limites, liberação de garantias, melhor gestão da inadimplência etc. Concordamos que eles são agressivos, mas temos que admitir que, muitas vezes, somos excessivamente complacentes em nossas taxas, tarifas e punições aos inadimplentes. O meio termo é desejável e urgente.

Tema alienígena para cheque especial e cartão de crédito

Devemos ter em mente que não se aplica na íntegra a lógica dos pênaltis deste artigo para clientes inadimplentes nas duas condições possíveis de adiantamento a depositantes, seja no  estouro da conta corrente ou do limite do cheque especial, caso haja. Também não se aplica na íntegra aos créditos rotativos ou atrasos no cartão de crédito. Pois nestes casos a taxa de juros é punitiva e faz o papel da Taxa de Comissão de Permanência. Sem esquecer, que nestas linhas, ainda será imputado ao inadimplente mais algumas tarifas punitivas.

Correr Risco é parte do nosso negócio

Risco é também fator de aprendizado, e é por isso que nossos carros têm extintor de incêndio, estepes e airbags. Não é para usar, mas está lá e certamente foi rigorosamente precificado no preço do veículo. Tal qual deveria ser nossa inadimplência. Buscar só ter uma carteira de crédito respaldada em garantias ou apenas conceder crédito a clientes de altíssima solvência é algo temeroso comercialmente. Pois não há mais espaço para crescer nesta linha de ação ou porque não é o perfil do varejo massificado onde ainda é o reduto de muita riqueza para a Singular.

Reflexão final: como informamos no início deste artigo, ele não será conclusivo; contudo, nas suas entrelinhas, foi enfático ao orientar os profissionais do cooperativismo de crédito para que tenham clareza que o sucesso deste modelo de negócio precede que queiram e saibam correr riscos, em especial aqueles usuais advindos do crédito. Também sinaliza que devemos assimilar a leitura dos bancos quanto a inadimplência, já que a trata como parte viva do crédito ao bem precificá-la em suas taxas de juros. Isto torna a inadimplência algo comercialmente plausível e corriqueiro, e com regras claras de cobrança e de pênaltis. Se desejar mais subsídios para condensar sua reflexão sobre este tema, aconselhamos reler os inúmeros artigos correlatos postados em nosso site.

Por fim, o cooperativismo de crédito deveria suavizar suas críticas aos modus operandi dos bancos de varejo, parando de crucificá-los a todo instante como um monstro de sete cabeças. Estes irmãos mais velhos têm muito ainda a nos ensinar, mesmo que não o queiram fazê-lo.

Devemos aprender como desenvolvem suas ricas argumentações e arquitetam novas posições comercialmente coerentes e defensáveis. Ou seja, precisamos evitar para que não emolduremos nacionalmente engessando o alinhamento da subjetividade contida no tripé: “Depende”, “Argumentação” e “Defensável”. Somos sim, peças de um Lego a serem ajustadas a cada uma de nossas micro verdades regionais.

Passemos a verbalizar ainda mais: “Tudo bem, mas espera aí”.