Falando de Reservas sem Reservas II

Recentemente em meu pequeno sítio me deparei com um belo pica-pau trabalhando duro para romper a casca de uma árvore para poder saborear alguns insetos. Realmente é algo espantoso! Passei, então, a procurar na internet como é que ele consegue tamanha força e rapidez sem ficar nem um pouco machucado com tamanha “agressividade”. E, após obter algumas informações curiosas sobre o pescoço e a cabeça dessa ave, me deparei com uma informação para lá de inusitada: as caixas pretas dos aviões poderão ser ainda mais resistentes graças a estrutura do cérebro do pica-pau! A hipótese que foi estudada pelos cientistas da Universidade da Califórnia é a de que eles poderiam aprender como proteger a caixa preta usando a mesma lógica da cabeça do pica-pau, já que ele bica uma árvore até 22 vezes por segundo e consegue suportar uma desaceleração de até 1.200g, e nós humanos só aguentamos 80g, sem que nosso cérebro seja danificado. Os cientistas fizeram vídeos e tomografias da cabeça e pescoço da ave com o intuito de desenvolver um sistema de estruturas que absorvesse o choque mecânico e protegesse a caixa preta de choques de até 60.000g. Atualmente, as caixas pretas suportam apenas 1.000g, ou seja, o mesmo que o pica-pau. A inquietude destes cientistas deviria ser combustível para muitos de nós do cooperativismo de crédito, pois esse exemplo deixa claro que devemos sempre rever aquilo que foi realidade no passado, para fazermos ajustes em nossas atuais verdades.

Neste cenário precisei reabrir a caixa preta do tema chamado “Reserva”, quando encontrei algumas inquietações em uma recente consultoria para as quais não havia respostas em nosso artigo de março de 2013: “Falando de Reserva sem Reserva”. Passado três anos, percebo que esse ainda é um tema a ser melhor lapidado, pois a Reserva é e será por décadas a mola mestra interna de nosso modelo de negócio. E dessa forma, apesar desse ser um tema de extrema complexidade, ele é estudado a fundo por poucos e analisado profundamente em dois únicos momentos do ano (Final do ano e AGO).

Portanto, nesta “segunda” edição abordaremos outros aspectos que sorrateiramente podem estar contaminando as análises da eficácia comercial de muitas Singulares, pois apesar das Reservas potencializarem Sobras futuras, elas definitivamente podem mascarar a eficácia comercial das Singulares, em especial aquelas que há anos vem elevando fortemente suas Reservas. Veremos a seguir uma série de motivos que devem instigar reflexões em nossos executivos.

Primeira reflexão: chama-nos a atenção quando verificamos que os ditos “elevados valores”, injetados nas Reservas em dezembro de cada ano como se fossem sua “remuneração”, são em volume inferior ao necessário para corrigir anualmente este saldo pela Selic de 14,25% a.a., base esta para 2.016. Ou seja, apesar de ser aparentemente volumoso, esse aporte anual na conta de Reserva tende, cada vez mais, a ser menor que o necessário para corrigir pela Selic cheia o saldo crescente em Reserva. Isso implica na conclusão racional de que seria melhor termos aplicado esse montante em títulos públicos, do que em nossa carteira comercial, algo incoerente haja vista que nosso modelo de negócio sem bem gerido é algo muito rentável. Claro que essa é uma conjectura, e que reconhecemos a necessidade da Reserva em nossos cálculos de exigibilidade, mas é oportuno a rediscussão diante de nosso nervoso mercado e do amadurecimento de nossos balanços, onde já é comum e crescente o número de Singulares com excesso de liquidez. Portanto, em muitas delas, o valor gerado como funding pela Reserva pode ser dispensado na composição do funding frente à carteira de crédito.

Segunda reflexão: com o incremento forte das Reservas, o custo médio do funding da Singular será cada vez mais baixo, gerando cada vez mais “Sobras”, mas isso não pode ser entendido como eficácia comercial, que é o que potencializa a perpetuação de nosso modelo de negócio. Isso é, sim, apenas uma gestão eficaz da compra de um de nossos mais importantes insumos – o funding. É algo importante, haja vista que o segredo de qualquer varejo está na compra do que irá se vender, e não propriamente na venda, ainda mais em nosso maduro mercado onde não temos exclusividade. Mas não podemos nos iludir com a evolução das Reservas ou Sobras, pois isso não é algo decisivo mercadologicamente, além do que, nos bancos, não há a figura das Reservas a custo zero, já que seus sócios exigem eficácia e retorno honesto de suas ações (Capital Social), além deles terem fortíssimo compulsórios, tributações, legislação, custos, sindicato, etc.

Terceira reflexão: passemos, então, a imaginar que temos uma Singular com Excesso de liquidez, e que o saldo em Reserva não se faz necessário somar para fazer frente a composição de funding para a atual demanda creditícia. Isso nos permite conjecturar que poderíamos coerentemente tê-lo aplicado integralmente em títulos públicos. Portanto, se imaginarmos uma Reserva de R$ 10.000.000,00 a um custo zero de remuneração, teríamos em 2016 uma remuneração de 14,25% a.a. (base Selic). Essa realidade está ocorrendo em muitas de nossas Singulares, e ela implica dizer que foram injetados R$ 1.425.000,00 nas Sobras apuradas em 2016. Isso significa que neste ano, as Sobras terão uma injeção de quase 1,5 milhões sem que nada tenha sido feito comercialmente para justificar esse enorme aporte. Dessa forma, esse cenário que mascara a eficácia nas “vendas” e no “mercado” tende a ser recorrente em muitas Singulares e terá análises equivocadas frente a elevadas Selics ou caso não remuneremos o Capital Social.

Quarta reflexão: muitas Singulares, para viabilizar a obtenção de boas Sobras estão reduzindo o percentual pago da Selic sobre o Capital Social, ou nem mesmo o remuneram. Isso denota um equívoco conceitual, ainda mais frente aos preceitos que norteiam o cooperativismo de crédito. Portanto, diante de uma Selic elevada e de salgadas taxas de juros massificadas, serão generosos os ganhos da Singular que decidir por um crescente e substancial saldo em Reserva. Sim, pois faz generosas e fáceis Sobras, já que o custo financeiro das suas soluções creditícias tende a “zero”. E esse ciclo anualmente se retroalimenta favorecendo a elevação farta das Reservas.

Quinta reflexão: devemos sempre analisar com cautela as Sobras à disposição da AGO, pois já observamos em algumas Singulares com excesso de liquidez que esse montante é inferior ao obtido pela aplicação do saldo anual da Reserva em Títulos Públicos. Portanto, sem levar em conta aqui se esta ou aquela Singular pagou juros ao Capital pela Selic, se conclui que é fraca a eficácia comercial de muitas destas Singulares. Também devemos observar que o crescimento da Reserva de muitas delas, somado a pouca ou nenhuma remuneração do Capital Social, vem permitindo Sobras generosas e novos aportes em Reservas, que indiretamente resultam em uma relevância muito acima do desejado, e que gradualmente vem mascarando a eficácia comercial da instituição. Importante: o mercado reconhece a eficácia contábil, mas somente permite que se perpetuem os eficazes comercialmente e que suportem as mesmas regras dos seus concorrentes.

Sexta reflexão: nossos gestores devem sempre observar qual é o impacto que o saldo crescente nas Reservas favoreceu no corrente ano a redução do custo do funding, pois mesmo sendo enorme este ganho, ele não será sinônimo de eficácia comercial do negócio frente às metas e ao mercado. Sem dúvida o crescimento da Reserva é um detalhe relevante, mas não demonstra necessariamente para a Singular sua eficácia nas vendas, crescimento de carteira, participação de mercado etc., como gostaríamos de acreditar. Sim, pois como vimos e sabemos, nossas condições comerciais legais e formais são muito mais fraternas do que as impostas aos nossos concorrentes diretos. Assim sendo, essa comparação com eles que detêm este mercado sempre deveria ser feita com um deságio intelectual, caso contrário, estamos traindo a nós mesmo ao obtermos conclusões equivocadas.

Sétima reflexão: há mais de 40 anos a lei 5.764 reza que: “as cooperativas são obrigadas a constituir um Fundo de Reserva destinado a reparar perdas e atender ao desenvolvimento de suas atividades, constituído com 10%, pelo menos, das sobras líquidas do exercício”. Contudo, os saldos de Reservas estão sendo generosamente compostos, chegando a patamares muito superiores à necessidade legal. Visitamos alguns modelos cooperativistas de crédito pelo mundo, e na Alemanha vimos que a Reserva é sem dúvida um enorme suporte à perpetuação da instituição, com potencial apoio a sociedade onde está instalada. Contudo, eles têm “Selic Zero” frente a nossos absurdos 14,25% a.a.. Além do que, lá, limitam o Capital Social a valores pífios e gastam muito pouco para remunerá-los. Portanto, para eles a Reserva é ainda muito mais relevante do que para nós, mas, em comum, vemos que ao fomentar a Reserva, minamos a racionalidade das Sobras que é, junto com o IOF, um de nossos dinâmicos e racionais diferencias comerciais. Fica claro que encontrar a razoabilidade na gestão desses interesses é um dos grandes desafios de nossos executivos. Por fim, só existirá generosa Reserva se formos “agressivos” comercialmente gerando grandes Sobras, só que este desafio deverá ser obtido diante de uma elevada Selic de 14,25% a.a., alta inadimplência, concorrência agressiva e bancarização recente, e aproveitando ao máximo os inúmeros benefícios fiscais não disponíveis a nossos concorrentes diretos – os bancos de varejo. Ou seja, competimos no Brasil um cenário comercial e regulatório realmente distinto dos encontrados nos países onde usualmente buscamos conhecimento para balizar nosso modelo de negócio.

Oitava reflexão: é fato que a Reserva só existe se parte do “lucro” anual dos sócios for direcionado para uma conta contábil específica, onde, potencialmente, só se beneficiarão os sócios que em um futuro estiverem nesta instituição, podendo ser inclusive outros sócios e não uma boa parte daqueles que hoje “contribuem” para a edificação desta avantajada Reserva. Pode parecer uma abordagem egoísta, mas o mercado e seus sócios são racionais. Se achar agressivo, doravante tente se manter no controle da Singular aportando sequentes e elevados valores em Reserva sem distribuir racionais e generosas Sobras, ou, então, tente não remunerar minimamente o Capital Social pela Selic, ou ainda tente apresentar um centavo de prejuízo na próxima AGO. Ao fazer isso, culmina em “prejuízos” racionais para seus atuais sócios de elevados Capitais e elevados benefícios para muitos outros sócios usuários de algumas soluções, quando das Sobras. Estes sócios que normalmente detêm elevados Capitais Sociais são usualmente os que detêm elevadas aplicações, saldo médio em Depósito a Vista e são os que consomem serviços em escala na Singular. Assim, se eles reduzirem estas posições, ou mesmo saírem da sociedade, fica muito complexo conduzir uma Singular, em especial pela carência de bons doadores de “funding” e pela diminuição de formadores de opinião quanto às vantagens do nosso modelo de negócio.

Apesar de ser defensável a opção de aportar boa parte do “lucro” em Reserva, Fundos de “Contingências”, Fates…, devemos observar se com esta decisão estratégica de longo prazo não estamos penalizando financeiramente os bons sócios, pelo fato de estarmos lhes repassando “pouco” lucro ou mesmo não estarmos remunerando seu Capital Social pela Selic cheia. É um cobertor curto, mas a visão de futuro só existirá se no curto e médio prazo formos eficazes e atrativos comercialmente. Vale relembrar que apesar de relevante para muitos leigos, o número bruto crescente das Sobras e Reserva pouco definem o quilate mercadológico de uma Singular, algo já bastante exemplificado em nossos artigos e eventos nacionais.

Reflexão Final: o tema Reserva tem a complexidade do cérebro de um pica-pau e a riqueza de reflexões e informações contidas em uma caixa preta de avião. E, no, nosso caso, devemos nos esforçar para que nunca seja necessário testar a sua capacidade de absorção de impacto. Devemos evitar leituras simples de cenários complexos. Isso nos permitirá gerir de forma oxigenada e astuta os temas afins da distribuição de lucros na Singular, inclusive a complexidade dos temas que circundam a coerente, mas ainda “indecifrável” Reserva. Saibamos ampliar nossas reflexões para reaprender nossas verdades.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento com Foco no Cooperativismo de Crédito
www.ricardocoelhoconsult.com.br – 41-3569-0466 – Postado em 03/08/2016