Desdenhar o presente não ajuda a desvendar o futuro

Depois de participar de eventos e palestras e analisar vídeos e notícias tratando das gritantes mudanças promovidas pela disruptura tecnológica em nosso modelo de negócio, vejo nela uma desconfortável onda “apocalíptica futurista” que se agiganta acima do coerente em nosso meio, fazendo com que alguns de nossos líderes fiquem em nirvana diante de tamanho encantamento. Acredito que inconscientemente desdenhem o presente, tentando desvendar um futuro fortemente suportado pela tecnologia, no qual pretendem colher os louros de terem sido um dos visionários dessa transformação.

Acredito que adotam essa postura por terem muitas vezes enorme facilidade com a tecnologia, ou verem essa destreza em seus filhos, sobrinhos e alunos, ou mesmo em sua área de trabalho, o que favorece que erroneamente acreditem que essa sua afinidade com a tecnologia esteja na quase totalidade dos nossos sócios, em especial aqueles lotados em pequenas cidades, sócios que convivem no meio rural ou aqueles de mais idade.

Sem um ótimo presente não existirá futuro: Essa é a linha que desejaria que fosse perseguida pelo Cooperativismo de Crédito, o qual ainda precisa de mais músculos para competir de igual para igual com os bancos de varejo, em especial se formos futuramente afetados pelo ônus do compulsório e elevada tributação, já aplicada a esses nossos concorrentes diretos.

Reconhecemos que há exceções à regra, e vemos empresas como Uber, Airbnb…, utilizando-se de elevada tecnologia. É certo que isso foi decisivo para o seu sucesso, mas é exagerado alardeá-las como se fossem baluarte da razoabilidade quanto à gestão de empresas que desejam competir no futuro. Isso, pois, elas “apenas” implementaram uma solução tecnológica que  aproximou consumidores dos detentores de recursos subutilizados/ociosos (carros e moradias).

Penso que aqueles que dominam os recursos escassos é que ainda irão ditar por um bom tempo a música que o Sr. Mercado deseja ouvir, e os detentores dessas riquezas estão muito mais antenados do que podemos imaginar. Dessa forma, focarão em tecnologia apenas se ela for algo escasso, caso contrário, irão aglutiná-la naturalmente a seu modelo comercial, sem perder o foco em acumular mais recursos escassos. Ou seja, é difícil dançar ao mesmo tempo valsa e samba, mas nada nos impede que dancemos bem a valsa tocada pelo mercado e tenhamos bons parceiros comerciais com predileção pelo “samba tecnológico”. Assim, nossas Singulares terão condições de serem ainda mais fortes em seu mercado, intermediando raros recursos e agregando soluções financeiras de qualidade. E, se for mercadologicamente oportuno, adicionarão a tecnologia em suas soluções.

Didaticamente, acredito que a síntese de nosso modelo de negócio é a de que sabemos comprar e vender o que o Sr. Mercado considera raro (dinheiro), e sendo a tecnologia um recurso não raro, ela é uma das inúmeras trilhas para se chegar à estação onde efetivamente vendemos nossas competitivas passagens.

Clientes tecnológicos são infiéis: Se tivermos certeza de que o óbvio comercial está bem feito, há uma grande probabilidade de amanhã estarmos atendendo novamente a nossos bons clientes, com ou sem muita tecnologia. Pensemos que os bons clientes disponíveis no mercado financeiro não mudam na velocidade da tecnologia, já que procuram bons parceiros e não um “banco” que seja reconhecido por disponibilizar ótimas soluções tecnológicas. Se um cliente não valorizar nossa tradição, lógica comercial e parceria, ele sempre será um péssimo cliente, já que se portará como compradores instáveis e “taxeiros”, procurando cada vez mais fazer leilões no mercado frente a suas demandas de soluções financeiras. E quanto mais tivermos clientes “taxeiros” em nossa base, mais comprometida estará nossa reputação e nossa perpetuação.

Para muitos, essa abordagem é ultrapassada, mas nossa crença é que ainda, por um bom tempo, é ela quem irá nortear nossos bons resultados. Se de forma frenética buscarmos ganhar mercado pelo tênue diferencial tecnológico, ele mesmo nos derrubará, tal qual aconteceu com Orkut, substituído pelo Facebook, que também pode a qualquer momento ser substituído.

Claro que sobram pelo caminho alguns poucos casos de sucesso atrelados à força mercadológica balizada fortemente pela tecnologia, mas é oportuno ressaltar que pouca ou nenhuma divulgação é dada a enorme quantidade dessas empresas que sucumbiram, levando ao abismo sonhos e riquezas de muitos.

Tecnologia como apoio: É natural que a tecnologia seja sempre uma ferramenta de apoio a qualquer negócio, mas é temerosa quando a endeusamos como sendo um grande pilar do nosso negócio. Vendemos e compramos dinheiro, e isso perdurará por várias décadas.

Precisamos apenas ouvir, entender e aprender o que está mudando, já que, em conceito, entendemos muito bem da intermediação de algo tão raro como o dinheiro. Lembrando que nossos serviços e produtos são sobremesas de nosso negócio que permeia a compra e venda de recursos, portanto é arriscado alicerçar nossa instituição na venda dessas soluções adicionais a usuários que não degustaram nosso rentável almoço – longínqua compra e venda de recursos escassos.

A tecnologia é lugar comum: A tecnologia se compra e a manteremos atualizada tendo bons parceiros ou uma área interna dedicada a sua gestão. E para tanto, esses devem focar em nos apresentar ótimas soluções, cada vez mais acessíveis e validadas. Ressalto aqui que nossos clientes não desejam que sejamos a instituição mais up to date do mercado ou que ganhemos prêmios tecnológicos disso ou daquilo. Desejam apenas que tenhamos soluções seguras, competitivas e já comuns no mercado. E essa simples compreensão muda tudo.

Assim, partindo da premissa de que fazemos muito bem o nosso desafio comercial, somente agregaremos tecnologia na medida em que ela seja essencial para o nosso modelo de negócio. Não estamos no mercado para sermos reconhecidos como uma instituição financeira high tech, tanto que um grande banco que assim se posicionava, já se distanciou dessa mensagem ao público. Estamos no mercado para sermos entidades confiáveis, atualizadas, com boas soluções e competitivas com os bancos de varejo.

Tecnologia X Maria Fumaça: Gosto de fazer a correlação com a Maria Fumaça. Nossos clientes nos escolheram por sermos uma instituição sólida e eficaz e que gradualmente implementa tecnologias já testadas, seguras e acessíveis. Ou seja, nossos últimos vagões são destinados à tecnologia e podemos engatar novos vagões caso ela gradualmente demande mais destaque. Entretanto, esses novos vagões tecnológicos só devem ser engatados em nosso trem se forem inevitáveis e/ou agregarem efetivo valor em nosso negócio que é o de sermos competitivas instituições financeiras. Fica tácito que é um equívoco trocar nossa Maria Fumaça por um Trem Bala, unicamente por esse ser a mais avançada tecnologia.

Esse erro estratégico de colocar a tecnologia como principal pilar de uma instituição financeira, mesmo que de forma velada, certamente não é garantia de que estaremos vivos no mercado dentro de alguns anos. O que vendemos não são repentes de tecnologia, e, sim, soluções bancárias desenhadas para bem atender de forma longínqua nossos sócios, os quais, cada vez mais, veem na tecnologia um destacado canal de entrega e interações.

Por outro lado, também devemos reconhecer que nossos sócios veem na tecnologia um calcanhar de Aquiles, seja pela altíssima velocidade das inovações, seja pela baixa capacidade de a assimilarem ou mesmo por precisarem adquirir sempre mais modernos equipamentos para fazer uso da nova tecnologia “bancária” ou “social”, ou mesmo da baixa qualidade da sua internet.

Chamamos atenção para o fato de que a tecnologia é um bem acessível a qualquer concorrente, e que nossas Singulares já dispõem de soluções tecnológicas muito próximas das oferecidas pelos maiores bancos de varejo. Portanto, esse não nos parece ser o maior problema de uma Singular que deseja se perpetuar nesse agressivo mercado, no qual há oferta de tecnologia de ponta a preços acessíveis e de fácil implementação. Contudo, nesse mesmo mercado não estão à venda valores geradores de diferenciais comerciais como: astúcia, expertise, tradição, cultura, causa, gente engajada… .

Minha grande inquietude: É avaliar em alguns cenários o discreto desdenhar com o nosso cotidiano comercial (o qual promove nossa sobrevivência), em detrimento de movimentos que procuram obter destaque como gestores ou instituições high tech. Ocorre que vemos grandes carências elementares em processos operacionais e comerciais que já deveriam ter sido sanadas em processos que se utilizariam da tecnologia que já dispomos, sendo esses, sim, uns dos grandes gargalos para nosso melhor desempenho mercadológico.

Isso nos remete a pensar se vale a pena darmos tanto destaque ao entorpecedor fascínio promovido pela evolução tecnológica, se ainda nem sequer temos capacidade comercial de saturar medianamente nossa base de clientes ou mesmo de atender satisfatoriamente nossos novos sócios. Essa constatação se vê pelo enorme percentual de nossos sócios inativos ou inanimados, mesmo sabendo que são assim rotulados com base em critérios benevolentes para que facilmente sejam considerados ativos. Portanto, esses sócios ativos são pouco representativos no critério que realmente importa: sócios aderentes comercialmente. Vê-se que há muito o que se fazer, e esse desafio não demanda tecnologia acima da qual já dispomos.

Se acreditarmos que devemos dar destaque a tecnologia em detrimento de coisas óbvias que ainda temos por fazer em nosso negócio, deveríamos ponderar a opção de termos outra empresa totalmente focada no desenvolvimento tecnológico, e que fosse competitiva em seu mercado. Assim nós a veríamos como mais um fornecedor externo, permitindo que comprasse de terceiros caso a nossa “empresa independente de tecnologia” não fosse a melhor opção.

Parece-nos complexo frente ao nosso nível atual de estrutura termos dois ou mais negócios que tenham regras tão díspares. Enquanto um for coadjuvante do outro não vemos problemas, tal qual temos a tecnologia impulsionando nosso negócio, que é basicamente intermediar a compra de recursos, agregando serviços e produtos preferencialmente trafegados pela conta corrente. A tecnologia fascina, mas ela é um risco se fizer sombra para nosso negócio.

Não há futuro sem presente: Disruptura não ocorre em players de segmentos como o nosso. O que vemos são vagões de tecnologia sendo discretamente agregados a nossa tradicional e confiável Maria Fumaça. As fintechs são mesmo quebras de paradigmas, ou nosso segmento assim as permitiu por comodismo ou pelo bruto “oligopólio”? Vejo que, pela prática, se essas empresas de tecnologia começarem a incomodar o segmento bancário, eles a compram como já ocorreu com 90% dessas startups, ou então, por deterem muitos recursos, farão melhor que elas, e, quem sabe, minarão diretamente seu mercado. Assim, sem perder o foco original, internalizam essas novidades entregando-as como mais um vagão de suas soluções tecnológicas. Clientes high tech não têm a aderência e a rentabilidade desejada, nem mesmo para a fintech. Seu frenesi mental à procura de opções ainda melhores frente às ofertas e soluções tecnológicas não permite a saudável longevidade tão buscada em relacionamentos comerciais.

Fintechs são disruptivas? O Sr. Mercado não prioriza a tecnologia para instituições que vendem o que é tradicionalmente raro, como é nosso mercado de intermediação financeira no varejo, pois a entende como mais um eficaz canal de entrega. As ditas grandes (dis)rupturas tecnológicas circunscritas a nosso modelo de negócio, são, na verdade, excelentes melhorias que simplificam e/ou barateiam o processo, haja vista que visam atender a uma necessidade em um serviço ou produto já existente. Não é porque não foram os “bancos” que as implementaram que são disrupturas, já que as fintechs de sucesso, em síntese, dão cartão de crédito sem anuidade, facilitam a abertura das contas por meios digitais, isentam pacotes de serviços, atendem públicos de baixa renda ou negativados, facilitam investimentos, promovem acordos de dívida parametrizados em canais eletrônico etc. Como se vê, são soluções totalmente passíveis de serem ofertadas por bancos tradicionais, ou cooperativas de crédito, caso queiram competir nesses segmentos.

Cooperativismo de Crédito X Alta tecnologia: Como catequizaremos nos princípios do cooperativismo os nossos sócios que adentraram pela tecnologia, sendo que esse já é um desafio frente aos sócios tradicionais? Teríamos, então, duas castas de sócios – tradicionais e high tech? Estaríamos preparados para confrontar, de forma rápida e saudável, um movimento negativo nos meios sociais tecnológicos que propague que vários sócios de uma Singular receberam surpresos boletos de rateio de perdas? Esses entre outros temas “tecnológicos” deveriam ocupar as agendas e as mentes de nossos executivos com a mesma magnitude que alguns dispensam as novas tecnologias.

Reflexões finais: Tenhamos foco no óbvio e não nos encantemos em demasia com a tecnologia, pois ela facilmente nos distrairá com seu impressionante desenvolvimento. Além do que é prazeroso estar nessa onda (ou vibe como os jovens dizem) por nos dar a agradável sensação de que estamos antenados com essa evolução, ganhando reconhecimento de nossos pares e pelo mercado. Mas, como vimos, essa eventual perda de foco por nossa parte, diante da enorme carência ainda de soluções elementares seja de processo ou comercial, será danosa à nossa perpetuação.

Podemos até admitir que a alta tecnologia ganhe destaque em nossas Singulares. Mas, por sermos limitados em recursos e tempo, certamente estaremos esquecendo do cotidiano que precisa de enormes melhorias comerciais e de processos para que melhoremos urgentemente nossa competitividade. Assim, nosso futuro depende de nossa atual efetividade comercial. E a tecnologia de que necessitamos hoje e no futuro deve sempre embarcar “discretamente” em nossos últimos vagões. Não há futuro sem presente.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento com Foco no Cooperativismo de Crédito
www.ricardocoelhoconsult.com.br – 41-3569-0466 – Postado em 19/02/2018