Bom garoto – Mau garoto: Um Jogo para poucos

Não se deve jogar dama com peças de xadrez. Essa frase sempre me vem à mente quando vejo movimentos de grandes players que se utilizam de gentis subterfúgios como forma de demonstrar forças entre si, sem que precisem se confrontar. O Banco Central (BC), representando as entidades econômicas legais e o Governo, bate e assopra as instituições financeiras, pois sabe que o seu patrão (Governo) depende muito dos bancos e que, bem ou mau, eles são a locomotiva que dá vida ao cotidiano brasileiro.

Somos uma entidade “nova” e “distante” desse movimento, mas deveríamos observar os gentis subterfúgios por parte do BC e dos bancos de varejo, onde ambos movimentam sutilmente suas peças no tabuleiro de xadrez sem que nenhum dos dois lados ouse dar o xeque-mate. A população fica envolvida como um terceiro agente de um jogo conhecido de “good boy, bad boy” (bom garoto, mau garoto), no qual dois jogadores acomunados jogam de um mesmo lado, sem que um terceiro perceba esse teatro, o que faz com que este perca sempre.

Os movimentos recentes do BC sinalizam que, como agente da política econômica nacional, ele busca ajustar o mercado mitigando o risco, melhorando a competitividade, dando assim eficácia na arrecadação do Governo. Vê-se normas para conter a economia informal, a lavagem de dinheiro, a repatriação de recursos etc. Isso, somado à recente queda da SELIC, que reduziu o custo de sua dívida, suaviza a penúria de caixa do Governo. Contudo, isso pouco ou nada favorece que os bancos reduzam suas taxas de juros à grande massa da população.

Assim, o BC e os bancos de varejo se respeitam ao ponto do regulador adotar medidas restritivas, como a da recente proibição do refinanciamento do saldo do cartão de crédito. Contudo, por não se envolver com as taxas praticadas pelo mercado, o regulador viu a taxa média disparar no parcelamento dos saldos residuais do cartão de crédito, pois essa tinha como base as mesmas caríssimas taxas do cartão de crédito. Aqui se percebe a incongruência social, pois quem recebeu aumento bruto no salário em 2017 de 3% a.a. passou a pagar parceladamente mais de 200% a.a. por uma dívida que era de 300% a.a., ou seja, esse movimento tão alardeado de queda das taxas de juros ao cliente bancário é inexpressivo e pouco ou nada reduziu os ganhos dos bancos. Mas os bancos posam de bons garotos, “esforçando-se” para dar à mídia sinais claros de que têm interesse na redução de suas taxas de juros, e sempre encontrando um inimigo comum e que poucos podem atacar para justificar taxas tão altas (ex. inadimplência).

Nesse cenário, o regulador não conseguiu reduzir o custo das dívidas dos mais pobres junto aos bancos, e muito menos permitiu que esse enorme público voltasse a consumir bens e serviços, o que giraria a roda da economia permitindo receitas com tributos ao Governo. A seguir, veremos outros movimentos que podem nos ajudar a refletir sobre o discreto e astuto jogo de forças entre o BC e os bancos de varejo.

Movimento 1: Se as Cooperativas de Crédito começarem a incomodar os bancos, pode ser que a entidade de classe dos bancos privados, ou mesmo os bancos públicos que perdem mercado para as Singulares, peçam ao BC que a regra comercial seja mais igualitária. Assim, esse regulador encontra argumentos para pedir ao Governo que não mantenha um diferencial comercial, como foi a extinta isenção de IOF. Essa recente incidência de IOF sobre os créditos que concedemos permitiu que a cada ano o Governo incremente sua receita em aproximadamente dois bilhões de reais. Algo representativo para um Governo com tantos problemas de caixa. Vale frisar que essa ação do Governo não teve impacto relevante em nosso modelo de negócio por não ter afetado o resultado da Singular, mas, sim, de forma discreta, consumiu alguns reais de cada um de nossos milhões de sócios que acessaram nossas linhas de crédito com recursos próprios. Um perfeito jogo de bom e mau garoto, com efeitos nocivos apenas em terceiros.

Movimento 2: O BC posou de bom garoto em abril, por meio do Conselho Monetário Nacional, quando reduziu o compulsório dos bancos de 40% para 25% nos depósitos à vista, de 24,5% para 20% na poupança normal e de 21% para 20% na rural. Foram 26 bilhões liberados aos bancos, que podem convertê-los em, no mínimo, 1,7 bilhão anual se o aplicarem a 6,5% a.a. em garantidos títulos públicos, ou podem ganhar facilmente 10 bilhões anuais se emprestarem esse recurso a “conservadores” 3% a.m., taxa que se aproxima da média do “baratíssimo” crédito consignado. O BC pode alegar que, liberando o compulsório, os bancos teriam mais recursos para emprestar, girando a economia e barateando o crédito.

Mas há sinais claros de que, diante da instabilidade econômica e política, os bancos estão receosos com o crédito e com muito dinheiro estocado para emprestar. Portanto, a redução do compulsório favoreceu ainda mais o ganho dos bancos, pois o BC não tem interação com as políticas de concessão de crédito dos bancos, e esses não irão assumir riscos maiores do que aqueles nela predefinidos, unicamente por terem, agora, ainda mais liquidez.

Movimento 3: A Febraban (Federação Brasileira dos Bancos) representa 122 instituições, ou 80% do mercado privado dos bancos, tendo como associados os maiores bancos nacionais, inclusive os públicos e os dois bancos cooperativistas. Ela, visando o “bem estar” dos correntistas, informa ao BC de suas “boas intenções” por meio de sua estrutura interna denominada: Sistema de Autorregulação Bancária (SARB), que congrega apenas dezoito instituições signatárias onde uma delas é um banco cooperativista. Esses dezoito bancos signatários, de um total de 122, devem aplicar as regras da instrução SARB 019/2018 denominada “Normativo de uso consciente do cheque especial” de pessoa física. Essa instrução traça regras e diretrizes para que apenas esses signatários melhor gerenciem seus esforços para o uso adequado do cheque especial concedido a seus correntistas.

Esse normativo define que, no segundo semestre, esses dezoito bancos signatários do SARB ficam obrigados a emitir aviso de concessão de uma proposta creditícia parcelada com taxas “competitivas” aos seus clientes de cheque especial que o estejam usando em mais de 15% durante 30 dias consecutivos, desde que o saldo seja maior que R$ 200,00. A Febraban informa que essa linha de crédito não terá adesão obrigatória por parte do cliente bancário e que será mensalmente divulgada a esse cliente, enquanto assim usar o limite. O limite pode ou não ser reduzido ou retirado, ficando essa decisão a cada banco. Vê-se uma “espuma” de bom garoto por parte dos bancos de varejo signatários ao SARB, o que, na prática, tem tudo para não dar em nada, já que os usuários de cheque especial nas condições aqui descritas estão literalmente usando as outras linhas já a eles disponíveis, nesse ou em outros bancos ou financeiras. Portanto, nessas condições de estresse social do cliente, o parcelamento de uma única linha pouco ou nada ajudará em uma educação financeira, que é um dos “mantras” que lapidam essa ação da Febraban. O BC precisa perseguir a redução da taxa de juros para a população, mas nessa ação ele é um ator discreto, já que esta “normatização” é algo interno da Febraban e afeta apenas aos dezoito bancos signatários do seu Sistema de Autorregulação Bancária (SARB).

A Febraban é uma entidade classista criada para defender os interesses de seus associados, em especial frente ao BC, e não dos usuários dos serviços de seus afiliados. Portanto, nem o regulador, nem nós podemos esperar que a Febraban proponha ações para que seus bancos associados percam mercado ou receitas, salvo se isso for indispensável para continuar forte no jogo. Isso se percebe nessa sua proposta de bom garoto ao “ajudar” os clientes dos bancos que usam de forma desregrada o limite de cheque especial. Muita espuma e pouca eficácia. O bom e o mau garoto se aproximam pelas suas interdependências e limitações estatutárias, para que um terceiro seja ou continue sendo penalizado.

Movimento 4: Frente ao crédito massificado, os clientes PF são considerados hipossuficientes, ou seja, detêm pouco conhecimento e poder de negociação. Assim, o Governo precisa protegê-los de entes econômicos ditos agressivos, tanto que surgiram entidades e ações para tanto como: Procon, Juizados de Pequenas Causas, Política de tarifas bancárias protetivas, Contas-salário, Portabilidade etc. Por outro lado, pouco ou nada se vê nos normativos protetivos focando em clientes pessoa física mais abastados ou empresas, quando esses negociam com os astutos agentes econômicos, pois, em conceito, esses detêm, sim, poder e informação.

Dessa forma, os normativos legais tendem a defender os entes econômicos hipossuficientes, e nos parece que a Febraban, com a criação do seu Sistema de Autorregulação Bancária (SARB) em 2008, passa a ter um “discurso” mais socialmente palatável, já que a maior parcela de sua rentabilidade é obtida desse público hipossuficiente. Esse discurso de bom garoto da Febraban acalma de alguma forma o ímpeto do BC em jogar cartas mais pesadas à mesa, como definir limites para taxas e tarifas para os bancos privados, maior tributação sobre seus ganhos, maior compulsório etc.. Esse comportamento mais complacente do BC pode ter explicações na alegação de que os bancos de varejo são um moderador pontual do mercado, o qual é soberano e se regulará pela oferta e procura.

Nossos bancos cooperativos, por necessidade técnica e pela política de boa vizinhança, já fazem parte do grupo de 120 bancos associados a Febraban, contudo apenas um deles é signatário do grupos de dezoito bancos do Sistema de Autorregulação Bancária (SARB).

Fica a pergunta: Onde estaria nosso Sistema de Autorregulação Cooperativista de Crédito (SACC), que deveria incluir nossas entidades com compensação própria ou compensação com um banco parceiro, para que tenhamos uma entidade classista que de fato transmita ao regulador um único discurso de parceria política e comercial?

Movimento 5: O BC precisa e conta com a implementação cada vez maior de ações sistêmicas de controle junto aos bancos de varejo. Assim, obtém mais agilidade na arrecadação de tributos; na redução de papel moeda em circulação pelo aperto nos pagamentos de títulos em espécie na boca do caixa, o que inibe a informalidade e reduz a lavagem de dinheiro; no cruzamento cada vez mais preciso das rendas e patrimônio no Imposto de Renda etc. Pode o BC alegar que o movimento tem o intuito de modernizar os controles e a equalização dos competidores, mas um dos seus grandes motes e que lhe dará visibilidade na mídia é adotar com sucesso medidas para redução das taxas de juros praticadas pelos bancos de varejo, por ser esse regulador o responsável pela defesa do crédito “justo” para a massa da população que menos tem conhecimento e poder de negociação. Entretanto, sabe-se que o jogo tende ao empate, já que as partes (Febraban e BC) irão ceder o que for necessário para que não caiam do tabuleiro, algo que fazem muito bem há décadas.

Movimento 6: O fato do regulador não interferir diretamente na taxa de juros praticada pelos bancos permite que as instituições financeiras públicas possam adotar medidas “populistas” como as vistas em 2015, quando, por imposição presidencial, reduziram suas taxas a patamares baixíssimos, gerando uma enorme queda em seus resultados e pouco efeito na taxa média do mercado. Tanto que hoje, mesmo sendo um grande banco público, um deles já pratica uma das maiores taxas do mercado. Recentemente vemos um novo movimento de muita repercussão na mídia, no qual um banco público reduz a taxa de juros do crédito imobiliário, pois sabidamente esse setor é um ótimo pilar pela sua agilidade em reverter patamares de emprego e renda para uma camada menos qualificada de trabalhadores. Esses bancos públicos, pelas suas especificidades, são discretos peões frente aos bancos privados e muitas vezes tendem a estar fora do real tabuleiro. Os bancos privados têm astúcia e reconhecem sua força e independência para ser bom garoto frente ao regulador e também pode ser mau garoto em suas tratativas com o mercado. Esse é um jogo para poucos.

Reflexões Finais: Seria oportuno dedicarmos algum tempo vendo os movimentos de bom garoto e mau garoto da entidade de classe dos bancos de varejo e do BC, para que, sendo nosso modelo de negócio umbilicalmente afetado por esse jogo, saibamos nos precaver e antever as jogadas desses ótimos jogadores.

Certamente eles jogam com as peças certas uma longa e intrigante partida de xadrez, e nossas peças ainda não estão nesse tabuleiro.

Não existe o nosso jogo e o deles. O jogo é um só. Não se deve jogar dama com peças de xadrez.

Concordar é secundário. Refletir é urgente.

Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento com Foco no Cooperativismo de Crédito
www.ricardocoelhoconsult.com.br – 41-3569-0466 – Postado em 19/04/2018